THIERRY SIMÕESFlop Flop

Exposição
27 Abr – 25 Mai 2019


Inauguração
Sábado, 27 Abril 2019, 16:00

Entrada gratuita

A natureza efémera dos sonhos

Óscar Faria

Seis camisas. Seis dióspiros. A camisa é um dióspiro. E vice-versa. Vestimos dióspiros. Comemos camisas. Do centro para a periferia a cor vai desmaiando. E depois desaparece. Esvai-se na parede ou na folha de papel. Desenhar com polpa, com cera, com carvão, com tinta-da-china. Manchar, estragar, rasgar. Apesar de tudo, a vontade de mostrar. A nossa roupa. Os trabalhos de Thierry Simões. Um ser em comum: nós somos o artista, o artista é o Sismógrafo.

A exposição “flop-flop” desenvolve-se em torno de ideias relacionadas com a ausência de um corpo, que se pode recordar através de cartões-de-visita, de camisas usadas, de uma mancha de café ou de cerume utilizado como se de encáustica se tratasse. O preâmbulo da mostra é constituído por um desenho realizado em três tempos incertos: 1999-2004-2017?: uma natureza morta, onde se observa um jarro, uma tigela, um sabão, um espelho negro e uma “borboleta ocupada”. 

Tal como acontece em muitos trabalhos de Thierry Simões, esta obra foi sendo feita e refeita ao longo dos anos, o tempo necessário para o artista acolher as intervenções que nela aconteceram. A relação entre o espaço doméstico e a natureza pode ser uma das chaves para a interpretação do desenho, que ainda inclui outros elementos formais, como uma espécie de esboçado prisma, esvaziado no seu interior que parece constituir o acesso do insecto a uma outra dimensão, ou mesmo a própria tentativa de nos dar uma possível chave de leitura para este trabalho, ao qual não deve ser alheia a palavra imaginação.

O mais recente livro de Norman Fischer, “The world could be otherwise” (Shambhala, 2019), inicia-se precisamente com um capítulo intitulado “Imaginação”, no qual este escritor descreve um episódio relacionado com um outro autor, Robert Desnos, quando foi transportado para morrer às mãos dos nazis. Ao ser retirado do camião, o poeta surrealista francês começou a ler a sina ao companheiro que se encontrava atrás de si, repetindo depois a situação com outros prisioneiros. Este gesto provocou o alívio da pesada atmosfera: quer os guardas, quer as vítimas começaram a rir, facto que teve como consequência a salvação desses homens, que assim regressaram ao campo de concentração com vida. 

Norman Fischer pergunta-se: é verdade este episódio transmitido por pessoas que não o testemunharam? E dá-nos uma resposta: “Claro que a história é verdadeverdadeira! Definitivamente, absolutamente, verdadeira. De uma ou outra forma, aconteceu.” E acrescenta: “A imaginação é poderosa. Cria a sua própria validação de uma verdade suficientemente forte para efectuar a transformação quer interior, quer exterior. Quando digo que estou absolutamente certo de que esta história de Robert Desnos é verdadeira, não quero dizer que estou certo dela como sendo uma ocorrência objectivamente verificável. Quero dizer que a história, enquanto história, é certamente verdadeira. Sinto a sua verdade e ela transforma-me, porque ela expressa algo de essencial acerca de quem somos enquanto seres humanos.”

Temos assim uma borboleta azul e um espelho negro, feito de obsidiana, uma pedra vulcânica. A imagem de um acordar ou de um sonho. Um insecto a perguntar ao espelho se está ou não acordado. Ou será que somos nós que estamos a sonhar?

“Uma vez Chuang Chou sonhou que era uma borboleta,/ contentíssima por ser uma borboleta./ Sentia que era o que queria ser e não sabia quem era Chou.// De repente despertou e, surpreendentemente, era Chou./ E não sabia se era o sonho de ser uma borboleta de Chou,/ se era o sonho de ser Chou de uma borboleta,/ se era Chou,/ ou se era uma borboleta./ Mas há certamente uma distinção! É a isto que se chama a transformação das coisas”.

No seu comentário a este texto, incluído na sua tradução do “Chuang Tse” (Relógio D’Água, 2017), António Miguel de Campos nota que através desta história o escritor chinês – autor taoista do século IV a.C. a quem é atribuída esta colectânea de textos sua homónima – tem a intenção de desestabilizar o leitor de forma a tentá-lo convencer a deixar-se vaguear através do domínio das mudanças infinitas: “É uma parábola que é uma alegoria que põe em causa a distinção entre a ilusão e a realidade, encorajando-nos a encarar todos os estados mentais como tendo a mesma natureza efémera dos sonhos.”

Preâmbulo à exposição, este desenho pode servir assim como um comentário ao título da mesma: “flop-flop”, essa ideia associada a um insucesso, artístico ou outro, que repetido várias vezes pode reverter a sua imagem numa outra coisa qualquer, como num jogo de palavras, que nos faz sorrir, tal como as outras frases dactilografadas pelo artista em cartões de visita, os quais nos apresentam quer em vida, quer na morte: “ping-ping”, “pong-pong”, “j’entends le son du cor” [Ouço o som da corneta], “Jean tend le sang du corps” [João estende o sangue do corpo]. Lembramo-nos também da mariposa do bicho-da-seda, a bombyx mori, que não consegue voar: “flop-flop”. E sonhamos com o insucesso, o fracasso, e com essa “carte de visite” de Marcel Duchamp, onde se liam, onde se lêem estes “calembours”: “Oculisme de Précision/ Rrose Sélavy/ New-York-Paris/ Poils et Coups de pieds en Tous Genres.” 

Em “flop-flop” aparecem novamente os maqueiros, essas figuras que surgiram ao artista numa gravura criada há cerca de vinte anos, quando o Thierry Simões, no âmbito de uma residência artística, passou por Halifax, na Nova Escócia, Canadá. Tal como já apontamos num outro ensaio, os personagens criados pelo artista fazem lembrar a estampa 24 da série “Desastres de Guerra”, de Goya. Nesse trabalho, com a legenda “Aun podrán servir” (1810-1814) vêem-se maqueiros a transportar um ferido. Um deles olha para nós, de frente. À sua volta recolhem-se outras vítimas, supostamente com o objectivo de regressarem ao campo de batalha. 

 

Na exposição do Sismógrafo, é revelada agora a materialização da maca. Trata-se de um objecto formado por duas camisas usadas: brancas por fora, negras por dentro. Suspenso, este trabalho sublinha uma ausência através dessas peças de roupa que entretanto passaram de mãos. Não há maqueiros visíveis, nem tão pouco o corpo de uma vítima. Pode mesmo afirmar-se que esta obra é quase um jacente, pois nela vislumbra-se um lugar para o descanso, como se de uma rede de dormir se tratasse. Porém, ainda se sente a vida a palpitar nesses tecidos, onde é possível observar uma mancha de café, ali caída, quem sabe, há poucas horas. É sobretudo um memorial, esta peça que nos faz olhar de frente para a vida e a morte, as presenças e as ausências, o tempo e o espaço que transportamos connosco. 

No chão, sobre burel, lixas que apagaram um desenho enviado por Thierry Simões ao Sismógrafo. E papéis recuperados ou feitos para a ocasião. São trabalhos feitos em comum ou com esse sentido de comunidade. Só dessa forma a arte ganha um sentido. 

O artista volta ainda a apresentar nesta exposição duas obras realizadas no âmbito de “Não é ainda o mar”, exposição colectiva realizada o ano passado em V. N. de Gaia. Ali, no parlatório do Convento Corpus Christi, foram revelados, num face-a-face com “Roda”, o derradeiro projecto de Pedro Morais, estes mesmos desenhos a terra sobre burel, nos quais se observam as marcas de um corpo, entretanto arrastado pelo chão. Colocados na vertical, os trabalhos restituíam, de alguma maneira, vida a um ser antes jacente – no caso da arte tumular, as figuras jacentes são esculpidas como se o morto estivesse em pé. 

Na sua introdução ao Tao Te King, o tradutor americano David Hinton, ao discorrer acerca do “tzu-jan”, algo que pode ser descrito como “aparecimento que surge de si próprio”, escreve: “Em vez da metafísica do tempo e espaço, esta experiência conhece o mundo como um presente abrangente, um florescimento constante de algo que podemos agora chamar ‘espaço-tempo’ ”. E continua: “Ou, mais precisamente, é uma constante transformação nas coisas, pois o seu florescimento estende-se até incluir o que vemos como passado e futuro: tal como no Caminho de Lao Tzu, não há distinção entre encher e esvaziar; portanto, falecer faz tão parte disso como chegar a ser”.

Sem passado, nem futuro: “flop-flop” é um presente bem vivo. E bem-vindo como um dióspiro que acabou de ser deglutido. 

Thierry Simões (Paris, 1968) vive e trabalha em Lisboa. Frequentou, em 1987, o Lycée du livre et de l’industrie graphique, no Lycée Maximilien Vox, em Paris. Em 1990, realizou o Curso Completo do Ar.Co. O seu trabalho tem sido exposto regularmente em espaços e instituições como: Sismógrafo, curadoria de Óscar Faria, Porto (2014 e 2016), Fundação Carmona e Costa, Lisboa (2013), Centro de Artes José de Guimarães, Guimarães, curadoria de Nuno Faria (2013 e 2012), Galeria Quadrado Azul, Lisboa e Porto, e Museu da Cidade de Lisboa (2009).

Folha de sala