THE BODY – BORROWS A REVOLVER

Bárbara Fonte, Dayana Lucas, Maria Durão, Marlene Dias, Rita Senra, Vera Mota

Exposição, Fora de Portas
10 Set – 24 Out 2021

@ Casa das Artes
Rua Ruben A, 210. Porto
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Terça a Sexta-feira
10:00–12:30 / 14:30–18:30
Sábado 14:30–21:00
Domingo e Segunda 14:30–18:30

Entrada livre

Não é preciso ser Quarto — para ser-se Assombrado —
Nem preciso é ser Casa —
Há Corredores no Cérebro —
Além do Material —

Mais seguro Encontrar pela Noite
O Fantasma Exterior
Que Confrontar por dentro —
Esse Hóspede Mais Frio.

Mais seguro, correr pela Abadia,
Pedras a perseguir —
Que encontro Desarmado a sós consigo —
Em Sítio a solidão —

O eu atrás do eu, oculto —
Assustaria mais —
Assassino escondido em nossa Casa
Menor Horror.

O Corpo — pega num Revólver —
Tranca os Portais —
Sem ver um espectro superior —
Ou Mais —

Emily Dickinson, Duzentos Poemas, Tradução, Posfácio e Organização de Ana Luísa Amaral, Lisboa: Relógio d’Água, 2014, p. 237.

 

Uma janela enorme, maior que todas quantas já vi, abre-se escancarada, não para o pátio de nossa casa, Rua da Hungria, mas sobre uma escura vastidão de nuvens. Sob as nuvens, possivelmente existira um lago. Julgo que sei de que lago se trata. No entanto, já não se encontra gelado, findou a Festa do Inverno, e os coros de homens patéticos que então se agrupavam na superfície de gelo, a meio do lago, desapareceram. Cemitérios sem conta rodeiam o lago invisível. Não se avistam cruzes, mas tornam-se mais densas e escuras as nuvens por cima de cada túmulo; mal se distinguem as lousas e os seus epitáfios. Meu pai está de pé a meu lado, retira a mão que havia pousado no meu ombro, porque se aproxima o coveiro. Meu pai lança ao homem um olhar imperioso, o coveiro, amedrontado, vira-se para mim. Quer falar, mas limita-se a remexer os lábios o tempo todo, só me chegando ao ouvido a sua última frase:

É o cemitério das filhas assassinadas.

(...)

Quando o sonho começa, o mundo está todo alterado e sei que estou louca. Os elementos do mundo ainda ali estão, mas numa confusão atroz, inconcebível. Há carros que circulam, reluzentes de cores, seres humanos que surgem, larvas horripilantes que se transformam ao abeirarem-se de mim, são manequins, fardos de arame, figurinhas de papelão, e vou avançando nesse mundo que não é o mundo, cerrando os punhos, braços estendidos a afastar os objectos, as máquinas que se abatem contra mim e se afastam esfumando; quando a angústia me não deixa ir mais longe, fecho os olhos, mas as cores, luminosas, detonantes, frenéticas, cravejam-me de manchas o corpo, o rosto, os pés descalços, entreabro os olhos para me orientar achar a saída, despois esvoaço, incharam-me os pés e as mãos, que se tornaram balões leves azul celeste e me transportam a alturas sem retorno onde tudo é pior, a seguir rebentam e caio, caio, levanto-me, ficaram-me negros os pés, é-me impossível continuar.

Sire!

Das espessas manchas de cor emerge meu pai que me diz, escarnecendo: Continua, vamos, continua! Levo a mão à boca donde me caíram os dentes todos, que à minha frente formam dois semicírculos de blocos de mármore, intransponíveis.

Não consigo dizer nada, devo tentar fugir de meu pai ultrapassando esse muro de mármore, entretanto numa outra língua começo a gritar: Ne! Ne! E numa mistura de línguas: No! No! Non! Non! Niet! Niet! Não! Ném! Ném! Nein! Na nossa própria língua só me sai da boca “não”, não me ocorrem mais palavras.

Vejo aproximar-se uma estrutura que rola em direcção a mim, talvez a Grande Roda cujos cestos vertem excrementos, grito: Ne! Ném! Mas meu pai, para que eu pare de gritar “não”, crava-me nos olhos os dedos, curtos e ásperos, cega-me, e apesar disso tenho de continuar. Insustentável. Sorrio porque meu pai exige que lhe dê a língua, quer arrancar-ma para que nenhuma pessoa, nem aqui, oiça o meu “não”, apesar de não haver mais ninguém além de nós para me ouvir; mas antes de consumar o seu acto e arrancar-me a língua, alguma coisa de horrendo acontece: uma mancha enorme e azul invade-me a boca, para lhe abafar o som. O meu azul, meu esplendoroso azul por onde caminham pavões, azul a perder de vista, azul fortuito no horizonte! O azul desce mais fundo até à garganta, meu pai ajuda-o, agora arranca-me o coração e as entranhas, mas ainda posso andar, chego às primeiras neves, numa sopa, antes de alcançar as neves eternas, dentro de mim ressoam estas palavras: Já não há então mais nenhum homem, no mundo inteiro, nem mais um, entre todos estes irmãos, nem mais um homem que preste, no meio destes irmãos? De mim, o que resta, condensado e imóvel no gelo, é um torrão, ergo os olhos para o mundo caloroso onde vivem os outros, e o grande Mestre chama por mim, primeiro em surdina, depois bem sonante, oiço, impaciente, a voz dele: Que procuras, que livro procuras? Estou sem voz. Que deseja o grande Mestre? Do alto chega até mim o seu apelo, cada vez mais claro: Que espécie de livro será o teu?

De súbito, do topo do pólo, donde não há retorno, consigo gritar: Um livro sobre o inferno! Um livro sobre o inferno!

O gelo quebra-se, caio para o fundo do pólo, no interior da terra. Estou no inferno. À minha volta ondulam labaredas finas e amarelas, cercam-me anéis de fogo dos pés à cabeça, cuspo fogo, engulo, fogo.

Ingeborg Bachmann, Malina, Lisboa: Edições 70, 1989, pp. 127-130.

Biografias

Bárbara Fonte (Braga, 1981) licenciou-se, no ano de 2004, em Artes Plásticas – Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Em 2005, realizou uma pós-graduação em Teoria e Prática do Desenho na mesma faculdade. Frequentou, em 2011, o mestrado de Ensino das Artes Visuais na Faculdade de Filosofia da Universidade Católica em Braga. Foi, desde 2006, docente de Desenho e de Artes Visuais no ensino secundário e no ensino superior. Desde 2014, dedica-se exclusivamente à produção artística. O seu caminho artístico tem vindo a desenvolver-se na área do desenho, abrangendo a fotografia, o vídeo, a performance e a instalação.

Dayana Lucas (Caracas, Venezuela, 1987) desenvolve uma pesquisa prática na área do desenho com particular interesse na passagem do desenho para a escultura. Realizou diversas exposições colectivas e individuais em contextos institucionais e espaços independentes em Portugal e no Brasil. Trabalha também como designer na área da cultura, tendo colaborado com músicos, artistas plásticos e diversas instituições culturais portuguesas. Em 2019, criou o projecto “ORINOCO”, uma editora de livros e edições de artista. Foi co-fundadora da Oficina Arara (2010–2017) e colabora desde 2010 com o colectivo SOOPA que se desdobra em diversas áreas: música, teatro, dança contemporânea, entre outros.

Maria Durão (Fão, 1999) estuda pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Estudou violoncelo na Escola de Música de Esposende e, mais tarde, Design de Comunicação na Escola Artística Soares dos Reis, no Porto. O seu trabalho divide-se entre a pintura, o desenho, a colagem e a fotografia, provocando encontros raros entre palavras e formas, num cruzamento de diferentes linguagens que se misturam num só lugar e que representam o quotidiano e, ao mesmo tempo, se afastam dele. O seu trabalho está marcado pelo gosto pelo objecto livro e tudo o que este representa; pelo que está em constante mudança, danificado, esquecido e destruído. 

Marlene Dias (Beira, Moçambique, 1956) vai estudar para Lisboa, aos 16 anos, concluindo a licenciatura em Artes Plásticas – Pintura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, em 1981. Foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1979 e 1980. Leccionou Artes Visuais em várias escolas secundárias de Lisboa. Actualmente vive e trabalha entre Lisboa e Alvaiázere. É neste lugar que encontra e actualiza aspectos comuns entre a prática artística e o trabalho de manutenção da biodiversidade natural envolvente. Desde 1986, tem vindo a participar em exposições, tanto individuais como colectivas.

Rita Senra (Barcelos, 1993) vive e trabalha no Porto. É licenciada em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto. Em 2015, ao abrigo do programa Eramus+, integrou o estúdio de Jiřího Příhody – Akademie výtvarných umění v Praze, República Checa. Em 2019, esteve numa residência artística em Clermont-Ferrand, França, num projecto de residências cruzadas da associação cultural Saco Azul. Desenvolve o seu trabalho artístico nas áreas do desenho e da instalação, com exposições, tanto individuais como colectivas, desde o ano de 2014.  É membro do Sismógrafo desde 2016.

Vera Mota (Porto, 1982) é uma artista cuja prática se revela sobretudo através da performance, escultura e desenho, apresentando regularmente trabalho nestas diferentes áreas desde 2003. Identificada com princípios minimalistas, a sua obra é percorrida por traços comuns que apontam para um conflito entre uma vontade de ordenar e um fascínio pelo erro e pelo acidente, num constante equacionar da participação do corpo na obra. Vera Mora questiona frequentemente as condições-conflito que regem as relações de verticalidade e horizontalidade. A dimensão performativa é transversal à sua obra. No âmbito de exposições ou programas de performance, o seu trabalho tem vindo a ser apresentado em várias exposições, individuais e colectivas, em diferentes países.

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Exposição, Fora de Portas
10 Set – 24 Out 2021

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10:00–12:30 / 14:30–18:30
Sábado 14:30–21:00
Domingo e Segunda 14:30–18:30

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