HERNÂNI REIS BAPTISTAA cortina de Parrásio

Exposição
16 Nov – 14 Dez 2019

Inauguração: 
Sábado, 16 Novembro 2019, 17:00

Entrada gratuita

Make-up, the show is over

Óscar Faria

“A cortina de Parrásio” é a segunda parte de um projecto iniciado com “As Uvas de Zêuxis”, uma exposição recentemente apresentada na Casa das Artes, no Porto. Partindo dessa competição entre pintores da Grécia antiga, onde o que estava em causa era saber qual dos dois, Parrásio ou Zêuxis, seria capaz de imitar melhor a realidade de modo a enganar o olhar do outro, Hernâni Reis Baptista constrói uma ficção acerca da alteridade no mundo contemporâneo.

Se, no primeiro momento, a natureza - morta, diga-se de passagem -, protagonizava essa intenção, agora, no Sismógrafo, o problema é deslocado para o humano. Através de um dispositivo que tem tanto de “passerelle” como de cenário de fim de festa, o artista propõe uma mostra atravessada por questões relacionadas com os ideais de beleza, a ruína, a morte da pintura e a camuflagem. Em pano de fundo, um rádio sintonizado na Antena 2 não só convoca memórias e afectos relacionados com o processo da exposição, mas também prolonga a experiência vivenciada por Hernâni Reis Baptista no seu ateliê, o qual passou a ser habitado por estes sons durante os últimos meses.

Há em “A cortina de Parrásio” uma relevante componente biográfica, pois o artista apresenta obras provenientes de outros contextos, como os vidros pintados de “Dog eat dog” (Sismógrafo, 2016) ou um mármore exposto em “Não é ainda o mar” (Convento Corpus Christi, V. N. de Gaia, 2018). A esses trabalhos, somam-se outras referências mais íntimas, que passam quer por amizades, quer pela família mais próxima. A opção por deixar em aberto, como se de uma adivinha se tratasse, a razão da escolha de alguns tópicos da exposição, como os relacionados com a sexualidade, a identidade e o género, prende-se com a tentativa de deslocar para um outro plano esses debates fundamentais nos nossos dias. Trata-se aqui tão só de abrir um campo de possibilidades, propor um diálogo, iniciar, uma vez mais, a discussão.

Essa resistência à norma, à normalização, chamemos-lhe assim por agora, tem por intenção o fortalecimento do território da intimidade, no qual a produção das subjetividades tem necessariamente de se confrontar com o crescente aparato conceptual apropriado pelo mercado das ideias. Assim, em vez de uma afirmação panfletária, directa, de uma qualquer identidade, Hernâni Reis Baptista propõe antes uma liberdade de escolha, poética, sensível, em que o outro coexiste consigo, na diferença, no desejo, na vontade de se ser todos os dias uma possibilidade em aberto. Talvez por essa razão, o pó de make-up que cai ora sobre uma máscara, ora sobre uma luva, ora sobre fragmentos do corpo (um pé, um joelho), se aproxime tanto do choro, pois a tarefa de atingir essa dimensão do ser, aquela onde nos apercebemos que, afinal, somos nada – e sendo nada, somos tudo, todos –, é sem dúvida a mais difícil e extrema de todas.

Em “A cortina de Parrásio”, o espaço do Sismógrafo encontra-se dividido em três, sendo que a zona central é preenchida pelas obras apresentadas recentemente na Casa das Artes, Porto. Se, então, os trabalhos revelavam a sua face mais directamente relacionada com a natureza – na qual se podia observar um conjunto de animais, plantas e minerais cujo principal atributo é a capacidade de se confundirem com o meio envolvente, quer enquanto estratégia de defesa, quer como forma de preparar um ataque –, agora exibem uma outra dimensão: a da pintura.

Se se prestar um pouco mais de atenção, podemos chegar à conclusão que as diferenças entre um e o outro lado não são assim tão grandes: ambos mimetizam peles, superfícies marmóreas, fragmentos de corpos. Contudo, nesta nova apresentação, existe um elemento que se destaca, a abstração pictórica, que de uma forma surpreendente adquire qualidades próprias da camuflagem, como se estes trabalhos, tão vivos nas suas cores, revelassem o seu disfarce: também aqui, por baixo da superfície, podemos imaginar cadáveres, preparados para o velório, ou para o enterro, através de uma cuidada aplicação de maquilhagem.

O que antes podia ser lido como uma passerelle ou um cenário de fim de festa passa também a ser um “filme de terror”: os membros decepados, transformados em pinturas abstractas – nalgumas é mesmo possível detectar nódoas e outras marcas corporais –, surgem ladeados por fragmentos de órgãos humanos – um joelho, um pé –, uma máscara, uma luva, obras que procuram simular a pele, casacos que prolongam o vermelho da alcatifa, camuflados… De repente, estamos perante uma verdadeira carnificina, exposta aos nossos olhos sob a forma de arte.

Se a intrincada obra que abre a exposição, feita com cintos de segurança, podia desde logo lançar a suspeita sobre esta nova proposta de Hernâni Reis Baptista, as peças seguintes – um mármore com uma imagem onde se vê um rosto com uma máscara, uma fotografia de umas costas com marcas parecidas com chupões, um tecido de limpar maquilhagem abandonado no chão – confirmam a estranheza deste ambiente, onde tudo parece estar visível e, no entanto, tudo está por esclarecer.

Nunca é demais lembrar que estamos no segundo momento da mostra, sob o signo de Parrásio, também conhecido como o pornógrafo – há a notícia de que um dos seus trabalhos representa Atalante no acto de felação a Meleagro –, ou seja, esta é uma exposição acerca da ilusão que a arte pode produzir. O que vemos pode ser sempre –quando é que as coisas se passam doutra forma? – um engano. E tanto assim é que, após sabermos da possibilidade de termos diante dos nossos olhos qualquer coisa de monstruoso, a própria música que incessantemente ecoa do outro lado da parede, a partir de um aparelho de rádio sintonizado numa estação dedicada à cultura, adquire uma dimensão tenebrosa – não foi o renascentista Gesualdo que compôs algumas das suas mais requintadas partituras após ter assassinado e desmembrado a sua mulher e o amante desta?…

Tudo é mutável: o barro, a beleza, o humano. No fim da exposição, tal como no início, a peça realizada com cintos de segurança: pintura, escultura, tapeçaria? Será esta uma questão ainda relevante depois de termos visto, ali, diante de nós, o fim de um mundo?

Hernâni Reis Baptista (Vila do Conde, 1986) vive e trabalha no Porto. É licenciado em Artes Plásticas - Multimédia, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, onde foi selecionado com o prémio de aquisição da exposição de finalistas em 2013. Começou a expor em 2011, de onde se destacam as exposições colectivas “CAVE”, na SOLAR, Galeria de Arte Cinemática (Vila do Conde, 2012), “Sem Quartel”, no Sismógrafo (Porto, 2014), "Quando alguém morria os gregos perguntava: tinha paixão” (Porto, 2016) e "Não é ainda o Mar" (Gaia, 2018), ambas com curadoria de Óscar Faria, entre outras. Apresentou individualmente “Mesa” e “Falha” no Espaço Campanhã (Porto, 2011 e 2013), “Tropismos”, no Espaço Vésta (Porto, 2015), “T-1000”, na Floating Islands, Maus hábitos (Porto, 2015), “Dog eat dog, no Sismógrafo (Porto, 2016, Curadoria de Óscar Faria) e "Intraduzibilidade, Untranslatability, Unu¨bersetzbarkeit”, no Klub Genau, a par do festival de arte “KARAT, the ocean and the river” (Colónia, Alemanha, 2013), “The Confession of the flesh”, na Kubik Gallery (Porto, 2018), entre outras. O seu trabalho está representado em coleções privadas e instituições internacionais, como a Fondazione Sandretto re Rebaudengo, Torino, Italia, entre outras. Participou também em residências artísticas na qual se destaca a “360º Context and Process”, pela Triangle Network no espaço Hangar (Lisboa, 2015) e Inter.Meada (Alvito, 2017). Trabalha maioritariamente com instalação, escultura, video, e diversos processos digitais.

Folha de sala

Exposição
16 Nov – 14 Dez 2019

Inauguração: 
Sábado, 16 Novembro 2019, 17:00

Entrada gratuita