BÁRBARA FONTEA casa arde e os esqueletos cortejam

Exposição
4 Fev – 11 Mar 2023

"Os desconcertantes vídeos de Bárbara Fonte têm formas abertas, dinâmicas. Produzem e subvertem o sentido. Não se deixam fechar numa sucessão temporal. Bárbara Fonte arranca fragmentos do contexto original, articula-os, estabelece com eles novas relações. Situa-se entre a literatura e a performance. Mostra-nos um mundo onde se depositou o que excluímos, o que deixamos de lado. Bárbara Fonte rompe a casca que recobre as coisas.

A aparência é a de uma velha comédia cinematográfica. As figuras parecem proceder da esfera do circo, preservam os últimos vestígios dos artistas saltimbancos. O cenário é velho, provisório, cheio de coisas desgastadas, caducas. Os movimentos são torpes, os gestos desarticulados, arrancados do contínuo.

Esta exposição lembra um mundo de clowns, máscaras, disfarces. Jogo, mímica. Num lugar onde as crianças se sentem a salvo, mostra-se a insensatez do mundo. Recusa-se a infantilidade daquilo que se diz adulto. As heroínas de Bárbara Fonte, com o seu estranho poder solitário, encontram neste mundo gasto e triste um último refúgio. Oscilam entre a bondade e a crueldade. No seu esforço sem esperança, tentam absorver a destruição, reagem a um poder opressor que lhes consome a vida, que não aceita o seu desvio.

De repente, descobrimos que estas figuras têm um aspecto arcaico. As forças que regem o seu mundo, também ele arcaico, são as forças do nosso tempo, do nosso mundo. O arcaico funciona aqui como um espelho. Em vez de se submeterem ou glorificarem o mundo, estas figuras resistem-lhe pela não violência. A única forma que encontraram para impedir que o mundo tenha razão foi dar-lhe razão, foi mostrar-se débeis, indefesas, incorporando as forças do inimigo. Imitam o mundo para lhe tirar a máscara. No seu mundo carregado de adereços e trastes velhos, tentam resgatar uma imagem de felicidade.

Em “A casa arde e os esqueletos cortejam”, Bárbara Fonte apresenta-nos uma sucessão de quadros, de episódios. Momentos congelados. Restos de experiências que com o tempo ficaram escondidas. Recebemos um choque como quando vemos uma velha fotografia. As associações despertam e perturbam a contemplação. Bárbara Fonte não falsifica a realidade com um sonho. Revela-nos antes uma imagem enigmática da realidade. Deixa elementos soltos, num trabalho marcado pela força do fragmento. Do choque entre os fragmentos nasce uma dimensão inesperada. O mundo recôndito destas figuras assalta-nos. Sentimos a proximidade das coisas. A materialidade golpeia-nos, provoca-nos uma sacudidela, deixa-nos cheios de dúvidas e incertezas. Quando o significado irrompe, quebra-se. Cada fragmento diz: “assim são as coisas” e ao mesmo tempo: “interpreta-me”. Mais do que o símbolo, joga-se com os momentos alegóricos. E, com a alegoria, surge uma interminável interrogação, um esforço de interpretação, o sentido vai-se desdobrando, tanto se obscurece como se ilumina e, nisso, lembra o mundo fechado da lanterna mágica.

O melhor é levar as coisas à letra. Às vezes, com a literalidade chega o riso. Devemo-nos fixar nos detalhes, na boca gigante, na trança, nos patos idênticos, no fantasma que parece uma cantora de ópera. No pequeno teatro de Bárbara Fonte, na sua fábrica de ilusões, os gestos tornam-se reveladores. Gestos perdidos, contundentes, enigmáticos. Gestos que pedem uma interpretação, uma experiência que não reprima a espontaneidade. Só quando nos atrevemos a imitar as figuras de Bárbara Fonte conseguimos reconhecer o que a artista deslocou do sentido comum. Compreendemos os seus vídeos quando reproduzimos as experiências neles depositadas, quando atendemos ao olhar interrogante das figuras que neles aparecem e, quando pensamos que as compreendemos, volta o enigma. A compreensão surge com o que se renova a cada instante.

Bárbara Fonte usa os detritos da história, coloca-os em novas relações, com eles cria novos mundos. Com os desperdícios de uma sociedade que morre, monta-se uma sociedade que nasce. As figuras de Bárbara Fonte levam a cabo uma cavalgata a contravento, ao encontro do passado, rumo ao esquecido. Assemelham-se às coisas, ao marginalizado. As coisas no esquecimento ganham outra forma, estão deformadas como o corcundinha de Walter Benjamin. Corcundinha que, sempre empenhado em fazer travessuras, se move na cave, nesse mundo inacabado, como se fosse a sua casa: “quis ir à minha cozinha/ fazer a sopa, e já nela/ me espera um anãozinho corcunda/ para me partir a panela”. Nos lugares abandonados, no mundo das coisas inúteis, por entre as cortinas, no grande tapete, as figuras que aparecem nos vídeos apresentam pequenos truques. Fazem uma festa com a loiça. Comportam-se como a bruxa má que nos mostra o verdadeiro rosto das coisas. Quebram a magia. São anjos e estrelas. Tudo seria verdadeiro se não estivesse atado com fios. Acrobatas, estas figuras saltam, deslizam, sacodem as pernas e os velhos vestidos, libertam de si o peso do mundo. Flutuam para a admiração dos fantasmas. São parentes da cantora Josefina do conto de Kafka: “quem não a ouviu cantar desconhece o poder do canto”. Meios pobres, um quase nada. Será realmente canto? Só precisa de mexer a cabeça, entreabrir a boca, olhar para o alto e arrebata, brilha. De onde vem o seu poder? A que se deve o seu encanto? Há nela alguma coisa que conduz ao riso, mas o riso fica congelado. Josefina renuncia ao falso êxito, à falsa fama. Tal como Josefina, as figuras de Bárbara Fonte perdem-se no território do esquecimento. Tal como em Josefina, “um algo da pobre e curta infância perdura nelas, algo da felicidade perdida, mas também algo da vida actual e da sua pequena e inconcebível alegria imperecedoura”." Emídio Agra

 

Bárbara Fonte (Braga, 1981) licenciada em Artes Plásticas – Pintura e pós-graduada em Teoria e Prática do Desenho pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, foi docente de Desenho e de Artes Visuais. Participou com textos e ilustrações em diferentes publicações. Realizou residências em diversas áreas artísticas. O seu trabalho, que envolve vários meios (desenho, fotografia, performance e vídeo), é descrito como uma performance íntima que explora a linguagem dos símbolos (um lugar evocativo e omisso, antigo e manifesto, íntimo e comum). Invoca a relação entre o feminino, a cultura e a religião de uma perspectiva individual em sintonia com uma história pessoal e uma atitude empírica, explorando o diálogo entre os impulsos da psique e os instintos de um corpo-eu face à consciência colectiva como seres de dogmas. Expõe desde 2001, destacando-se as seguintes individuais: Coreografias do Riso, Casa-Museu Abel Salazar, Porto, 2021; Pústula, Galeria A. Molder, Lisboa, 2021; Neste corpo não há poesia, CAAA, Guimarães, 2020; M (de manifesto), Galeria da Universidade do Minho (Museu Nogueira da Silva), Braga, 2018; Fluxo de Intervalos, Câmara Municipal de São João da Madeira (Paços do Concelho), 2016; Reversibilidade, Fundação Júlio Resende (Lugar do Desenho), 2015.

Folha de Sala

Exposição
4 Fev – 11 Mar 2023