RENATO FERRÃOFinito

Exposição
23 Abr – 28 Mai 2022

Abertura
Sábado, 23 Abril 17:00

Entrada gratuita

Aqui no telemóvel é difícil de perceber, mas o que estás a ver é uma imagem do Tom no preciso momento em que perdeu a cabeça, dizia-me o Renato enquanto bebíamos um príncipe na esplanada do Embaixador, ao final da tarde do dia 22 de Março. Chovia. Muito. E sempre que o Renato afastava os dedos sobre o ecrã em mais um movimento de ampliação, as gotículas de água criavam um rasto de deformação, como pequenas lentes irisadas a retalhar o que restava do pobre Tom. Não tenho certeza de o ter dito ao Renato, mas naquele momento lembrei-me do Pedro Miguel Frade e do Espinosa. Do segundo, vinha-me à memória o facto de ter sustentado a sua espantosa contribuição filosófica para o mundo com a magra retribuição que lhe advinha de um day job como polidor de lentes. Do primeiro, vinham-me fragmentos avulsos do livro Figuras do Espanto, entre os quais se encontravam a desconfiança generalizada da Idade Média para com a (nova) tecnologia das lentes (algo como, se Deus quisesse que víssemos melhor, ter-nos-ia dado olhos mais poderosos!), a sua sedimentação no período do Renascimento, a sua contribuição para a descoberta do infinitamente pequeno e do infinitamente grande (micro- e telescopia), o seu papel na invenção da fotografia.

Que o Tom tivesse acabado de perder a cabeça naquela imagem era apenas adequado: o “espanto” a que o título do livro do Pedro Miguel Frade aludia estava ligado à crença folclórica do final do século XIX que garantia que a fotografia fazia refém a alma do fotografado. Segundo este credo, a cada retrato corresponderia, portanto, um desalmado, um morto-vivo que inadvertidamente se deixara hipnotizar pelo negro infinito que espreitava do obturador. Aplicando a mesma lógica, depreende-se que, para estes seus primeiros espectadores, a fotografia não poderia ser outra coisa que não a alma plasmada sobre papel, o que a tornava uma espécie de corpo de delito e, simultaneamente, de lugar da reificação dessa essência intangível do retratado na forma de uma miniaturização, a preto e branco, da sua imagem. O “espanto” não foi – pelo menos inicialmente – a expressão de um maravilhamento; o “espanto” foi a expressão de um terror.

Suspeito que não haverá autor algum que se tenha debruçado sobre a fotografia que não se tenha visto inevitavelmente conduzido à questão da morte. A fotografia está sempre no passado, do lado das coisas irrecuperáveis. E ao contrário do que diz Victor Espadinha, recordar não é viver; recordar é experimentar voluntariamente esse estado da morte-viva, é dar espessura ao fantasma. É justo, portanto, que esta exposição se chame “Finito”. Faz sentido que ela apresente imagens de fantasmas e de toda a sorte de desalmados. É curioso que cada uma delas seja uma tautologia velada da própria condição ontológica da fotografia e é irónico que, na forma da sua reprodução perpétua, nenhuma delas chegue a ter corpo nem espessura.

Na verdade, o conteúdo iconográfico destas imagens é o que menos interessa. Do que me tem sido possível acompanhar do percurso do Renato, é frequente vê-lo embrenhado em experiências complexas que procuram muito mais provocar um dado efeito do que criar um determinado objecto. Nos últimos anos, a óptica tem sido o seu campo de investigação predilecto. Lentes, luzes, transparências e motores têm sido os condimentos com que tem ensaiado receitas diversas que visam a possibilidade de ainda nos maravilharmos com os fenómenos da percepção visual. Neste caso, a tónica está na (também defunta) mecânica da revelação fotográfica. O espanto que procura incitar não pertence a nenhuma imagem em particular: é o espanto do próprio processo, do acontecimento alquímico que faz aparecerem aspectos do mundo sobre o branco mudo de uma superfície.

Claro que o acesso a essa experiência é da ordem da ficção. Estamos no campo da experiência artística, do “como se”. Este não é um laboratório e estas não são fotografias. Os projectores guardam as imagens dentro de si e as aparições não se fixam em lado nenhum. A magia alquímica é emulada por intermédio de um aparato mecânico, programado, sequencial e sincopado, e as imagens que se projetam, na verdade, não interessam. O Renato sabe que as imagens não podem interessar. Sabe que no meio da náusea escópica em que estamos coletivamente mergulhados, as imagens tendem a equivaler-se, a anular o seu poder simbólico, a sua capacidade para significarem. Nem punctum nem studium – a imagem contemporânea transformou-se na caricatura do seu próprio fluxo. O que interessa é sempre a próxima imagem. É por isso que insistir no mesmo, na repetição infinita do que se apresenta, sobretudo através de imagens que proclamam, de forma tão despretensiosa e tão desprovida de pathos, a sua vocação funesta, é um gesto poético. Quase tão poético quanto forjar cuidadosamente o espanto no simulacro de uma revelação.

Bruno Marchand

Renato Ferrão (V. N. Famalicão, 1975) é artista visual. Trabalha e reside atualmente no Porto. Expõe regularmente desde 2001 e em diversas ocasiões realizou obras em colaboração com Nuno Ramalho. Entre as suas exposições destacam-se: Senhor fantasma, vamos falar – Emissores reunidos, Fundação de Serralves; Peças de substituição, Espaço Chiado 8; Cascatas e desabamentos, Sismógrafo; Retrato em casa de espanto, Centro de Arte Contemporânea Graça Morais; Estudo das passagens, Ano 0 / Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra. Em 2003, foi membro fundador do espaço Salão Olímpico e, em 2011, foi-lhe atribuído o prémio de artes plásticas União Latina. Na sua obra mais recente, tem vindo a apresentar instalações onde a luz e o movimento assumem um papel preponderante.

Folha de sala