PEDRO HUETBlaze the fire

Exposição
31 Mai – 29 Jun 2019

Inauguração
Sexta, 31 Maio 2019, 22:00

Entrada gratuita

Senza paura

Óscar Faria

Na tradição judaico-cristã, o juízo final é uma questão fulcral, que está associada à vinda de um messias e à ressurreição dos mortos. Nesse derradeiro dia, que será também o primeiro, ou seja, hoje, cada ser humano é julgado pelo mais ínfimo acto produzido em vida. Um teólogo cristão, Orígenes (c.185-c.283), afirmou que, nesse renascimento, não será o corpo a ressurgir, mas antes a sua figura, o seu “eidos”, conceito platónico, segundo o qual para nos aproximarmos das coisas é preciso reconhecer as suas linhas-limites, a sua aparência.

De acordo com a teoria de Orígenes, nome que em grego significa “filho de Hórus”, o deus egípcio com cabeça de falcão, será o “corpo espiritual”, termo tomado de empréstimo de São Paulo, a ressuscitar. Num diálogo do qual apenas se conhecem fragmentos, este teólogo afirma que a alma retém o “eidos” do corpo: “A maioria das almas, tendo falhado na purga dos seus pecados nesta vida, é convidada a passar a espada flamejante que barra a entrada no paraíso terrestre”, como se pode ler na entrada dedicada a este autor, na Stanford Encyclopedia of Philosophy.

Há um equivalente terreno a esse instante final, escatológico, que é o tribunal, no qual igualmente se julgam as acções dos homens. Existe ainda uma terceira dimensão relativa aos juízos, quer sejam divinos, quer surjam sob a forma secular: a fiscalização do poder político, que pode surgir nas figuras da parrésia, das Cortes, do bom e do mau governo, da democracia parlamentar, etc. Se, no primeiro dos casos, cabe ao indivíduo enfrentar a autoridade, colocando em risco a sua própria vida, nos outros, a questão centra -se no voto, elemento essencial da expressão de um colectivo.

Na “Sala dos Nove” do Palácio Público, de Siena, entre 1338 e 1339, Ambrogio Lorenzetti pintou uma série de três frescos, conhecida como “A alegoria do bom e do mau governo”. Trata-se de uma obra política centrada na ideia de como os detentores do poder civil devem ter em conta o bem público na tomada das suas decisões. Essa responsabilidade associa-se à dos cidadãos também agirem de acordo com o benefício comum, neste caso ligado aos trabalhos sazonais, os quais devem ser realizados em sintonia com os planetas, de forma a manter uma paz duradoura. Na representação de Lorenzetti surgem diversas figuras da Virtude, como a Magnanimidade, a Temperança, a Força Moral, a Prudência e a Justiça. 

Há um animal dançante que representa a noção de Justiça, a avestruz, com as suas penas de igual comprimento, o que simbolicamente se relaciona com a necessária equidade na tomada de uma decisão judicial: não pode haver dois pesos e duas medidas. Uma das traduções da “Iconologia”, obra escrita pelo italiano Cesare Ripa, no início do século XVII, dá conta desta relação, que tem as suas origens no Antigo Egipto, sendo mesmo a sua pluma o símbolo da deusa Ma’at, a patrona dos juízes, representada com os olhos fechados: “A avestruz rumina a sua comida como a Justiça deve testemunhar diante dela.”

Na obra de Lorenzetti, a Justiça surge representada, no campo do “bom governo” quer enquanto imagem vindicativa, quer como personagem ligada à sabedoria e à concórdia, neste caso sentada num trono. Em contraponto, na parede dedicada ao “mau governo”, é a Tirania que surge, igualmente sentada e rodeada pelos vícios – a Vã Glória, a Avareza –, subjugando, a seus pés, uma Justiça, atada e despenteada, limitada na sua acção.

Em “Blaze the fire”, qualquer coisa como “atear o fogo com o fogo”, Pedro Huet convoca também uma série de figuras, sobretudo deuses, mas também o proletariado, para questionar não só a velha dicotomia do céu e do inferno, mas também a Justiça e os seus avatares. O artista fabricou uma série de trabalhos -vídeos, caixas de luz, esculturas em barro, imagens digitais -, para simbolicamente realizar uma crítica da política neste tempo de sucessivas crises e emergências. Como diriam os situacionistas, “movemo-nos na noite sem saída e somos devorados pelo fogo”.

Depois de ser recebido pela imagem de uma avestruz a arder no inferno, o espectador entra num ambiente dir-se-ia infernal – a sala maior do Sismógrafo é banhada por uma luz vermelha, a necessária para o velho processo de revelação. Ali, debaixo de fogo, surgem as restantes obras da exposição, que nos falam sobretudo da lei da selva, tanto na sua expressão animal, como nas suas declinações mitológicas e humanas. Tais lutas tanto podem estar relacionadas com a selecção natural, como com as estratégias de conquista do poder, como é o caso da guerra. É a lei do mais forte, costuma dizer-se, contudo, por esta mostra passa uma outra mensagem: essa legislação deve ser a do colectivo, que deve tomar o destino nas suas mãos e dessa forma vencer o tirano, mesmo aquele que existe em cada um de nós.

Surgem assim, tal como no fresco de Lorenzetti, os exemplos, os bons e os maus, que muitas vezes podem confluir num mesmo personagem. A avestruz e a chita, os deuses Mafdet e Thor, o escorpião e a cobra – animais que, num trabalho circular, acabam por trocar incessantemente de cabeça, mostrando assim que o poder pode mudar de rosto, mas o veneno continua lá, potencialmente letal –, o céu e o inferno. Há ainda um vídeo no qual se observam dois personagens: uma malabarista, que brinca com o fogo, e um bailarino numa improvisação na qual é possível identificar gestos associados ao treino militar. Atear o fogo com o fogo, apontar o dedo à ferida: a vida é um jogo.

“Se não puder dançar, esta não é a minha revolução”, diz-nos a célebre frase da anarquista lituana Emma Goldman (1869-1940). A paz na cidade deve corresponder ao movimento dos planetas. Esse tempo da amizade e da concórdia é representado, no fresco de Lorenzetti, através da dança de Vénus. E, na exposição de Pedro Huet, a dança do fogo, pode também ser interpretada como um momento de festa. Vem de longe esta ideia de uma catarse através de instantes de alegria associados às coreografias de um corpo colectivo: “E fez duas cidades de homens mortais, / cidades belas. Numa havia bodas e celebrações:/ as noivas saídas dos tálamos sob tochas lampejantes/ eram levadas pela cidade; muitos entoavam o canto nupcial. / Mancebos rodopiavam a dançar; e no meio deles/ flautas e liras emitiam o seu som.” (“Ilíada”, de Homero, Canto XVIII, linhas 490-495).

Naquele que é porventura o mais notável livro escrito acerca dos frescos de Ambrogio Lorenzetti, “Conjurer la peur: Sienne, 1338: essai sur la force politique des images” (Seuil, 2013), o historiador francês Patrick Boucheron nota: “(…) o tempo da guerra é o tempo em que tudo acontece sob o constrangimento de uma única sensação, aquela de terror; o tempo da paz é mostrado pela libertação dos corpos em movimento, vindo e indo, agindo ou permanecendo em descanso, comprazendo-se na liberdade e na alegria da vida, e sempre, como uma das inscrições no fresco proclama, ‘senza paura’ (sem medo)”.

À saída, surge a imagem de uma cabeça de avestruz, no meio do céu, a sorrir subtilmente para nós. Ter-se-á feito justiça? Será feita justiça?

Pedro Huet (Porto, 1993) vive e trabalha no Porto. Frequentou a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, a Academia de Belas-Artes de Viena e a LUCA - School of Arts em Bruxelas. Das exposições individuais destacam-se: “Walled”, Sismógrafo, Porto (2016); “were our eyes not like the sun, they could never see it”, Mupi Gallery – Maus Hábitos, Porto (2016); e as exposições colectivas “Não é ainda o mar”, Fórum GTM, Convento Corpus Christi, Vila Nova de Gaia (2018) ou “No meio de qualquer coisa”, Galeria Graça Brandão, Lisboa (2016). Em 2018 esteve em residência em Clermont-Ferrand, França, na plataforma Artistes en Résidence. Foi fi nalista do prémio Novo Banco Revelação 2016.

Folha de sala