FERNANDO BRITOA man should always have an occupation of some kind

Exposição
27 Jun – 1 Ago 2020

Inauguração
Sábado, 27 de Junho de 2020, 15h00

Entrada gratuita

A exposição “A man should always have an occupation of some kind”, de Fernando Brito (Pampilhosa da Serra, 1957), é inaugurada este sábado, dia 27, no Sismógrafo. A frase que dá título à mostra foi retirada da peça “A importância de ser prudente", de Oscar Wilde. Trata-se de uma farsa ou, como se lê no subtítulo, de “uma comédia frívola para pessoas sérias", tendo sido estreada em 14 de Fevereiro de 1895, em Londres.

O corpo de trabalhos apresentados, inéditos na sua maioria, cobre um arco de duas décadas nos meios da pintura, da escultura e desenho. Na exposição é possível descortinar três linhas de produção distintas: a revisitação de obras canónicas quer do modernismo, quer do pós-modernismo, a série dedicada ao expressionismo abstracto alemão, e um vasto conjunto de papéis nos quais o artista nos revela alguns aspectos do quotidiano da civilização Budonga, surgida há cerca de seis mil anos.

O seu a seu dono

Óscar Faria

Há ainda hoje quem ponha em dúvida a existência de Fernando Brito. Essas incertezas voltam a surgir sobretudo quando é anunciada uma nova exposição do artista. A corrente mais radical nega totalmente a sua existência, sustentando a sua posição numa análise crítica de obras apresentadas como prova da produção realizada por essa personalidade. “Não bate a bota com a perdigota”, lê-se num ensaio publicado numa revista académica. E, num outro texto, pode assinalar-se este outro comentário: “Não diz a cara com a careta". 

A razão principal para tais dúvidas, às quais se podem juntar algumas teorias da conspiração, deve-se ao facto de Fernando Brito ter, não uma, mas várias identidades, o que dificulta a tarefa de atribuição de certas obras ao artista. Essa confusão aumenta quando os estudiosos se deparam com determinados trabalhos e os identificam como sendo um Duchamp, um Man Ray, um Jeff Koons, um Picasso ou uma Louise Bourgeois. Sendo erros comuns, estes, o facto é que eles dão origem a deturpações significativas no contexto da História da Arte, dando assim argumentos de peso à corrente negacionista, liderada pela autodenominada facção anti-Brito. Este grupúsculo é mesmo apontado como responsável por uma manifestação onde se podiam ler frases como “o seu a seu dono", “gato por lebre" e “no melhor pano há engano".

Tendo em conta esta situação, o Sismógrafo decidiu convidar Fernando Brito a realizar uma exposição no seu espaço de forma a que, de uma vez por todas, se coloque um ponto final nas dúvidas relativas à existência desta pessoa. Não foi um processo simples, contudo, após várias tentativas falhadas, chegou às nossas mãos, via carta registada, uma lista com uma série de obras, com a garantia de elas serem entregues a tempo do período previsto para a montagem da mostra. O envelope enviado, tendo como morada do remetente um apartado, incluía ainda o primeiro acto de uma peça de teatro, escrita por Oscar Wild, com o pedido expresso do artista de que esse texto fosse impresso na folha de sala de “A man should always have an occupation of some kind”. É esse mesmo fragmento que aqui publicamos. 

Quanto a Fernando Brito, nunca chegamos a estar com ele. Nem sequer conseguimos falar com o artista por telefone. Tudo foi tratado por intermediários eficazes e sempre diligentes na resolução dos problemas que foram surgindo. A todos, o nosso muito obrigado.

 

Pastiches

Tragicomédia em cinco actos

Personagens:

Fernando Brito

Roda de bicicleta 

Prenda

Suporte de garrafas

Guilhotina

Arco-íris 

Papá

Figurantes:

Desenhos da civilização budonga

Pinturas expressionista alemãs

 

Acto I

 

A acção situa-se no exterior do Sismógrafo, na Rua da Alegria, no Porto. Por vezes, sem que os diálogos sejam interrompidos, escutam-se pipilos de gaivotas. Os personagens vão chegando um a um, mantendo-se à porta do espaço, enquanto esperam pela autorização para entrar. Durante esse impasse, trocam palavras de circunstância. O embaraço é óbvio para todos: mal se conhecem, mas têm a estranha sensação de já se terem cruzado. Na montra, servindo de pano de fundo aos diálogos,  encontra-se um cartaz de Yoko Ono, onde se lê a frase, em inglês: JOY OF LIFE. A primeira personagem a chegar, adiantada relativamente à hora marcada, é a Prenda. Passado meia hora aparece a Roda de bicicleta.

 

Roda de bicicleta: Boa tarde.

Prenda: Boa tarde.

Rdb: Sabe se o senhor Brito já chegou?

P: Parece que sim. Disseram-me que está reunido com os responsáveis do espaço a tratar de questões de última hora.

Rdb: Espero que não se demore muito. Detesto ficar tanto tempo sem me mexer. Adoro quando o senhor Brito me põe a andar à roda. Fico hipnotizada a olhar a minha sombra na parede: um círculo perfeito.

P: Eu e as minhas irmãzinhas ainda estamos à espera de saber qual vai ser o nosso destino. O senhor Brito disse-nos que tinha vontade de nos colocar em cima de uma prateleira com uma cor estridente. Ficamos a olhar para ele em silêncio (encolhe os ombros). Por isso vim sozinha, as manas ficaram em casa a passar a roupa a ferro. Vou telefonar-lhes assim que tiver alguma notícia. Já lhe tinha dito que somos gémeas? Trigémias! Cópias umas das outras, quase não se notam as diferenças.

Rdb: Você lembra-me um outro objecto que vi há muitos anos num museu. Uma obra chamada “Cadeau", feita pelo senhor Man Ray, excelente artista, por sinal. Tem mesmo muitas semelhanças com ela… se calhar é da família, não?

P: Não é a primeira vez que me comparam com esse trabalho, que já vi em reproduções fotográficas numa revista, num dia em que fomos todas ao cabeleireiro. Tropecei nelas num suplemento dedicado às relações entre arte e moda. E disse logo às minhas irmãs: olhem, meninas, que obra tão mal acabada… Foi aí que também fiquei a saber que o senhor Man Ray rasgou um vestido com essa peça, depois usada por uma modelo durante uma sessão fotográfica. (pausa) Eu e as minhas irmãzinhas fomos feitas pelo senhor Brito. Pelo menos é isso que ele nos diz. Quase não nos distinguimos. Perfeitinhas, bem acabadas… Estamos prontas para sermos colocadas em cima de uma prateleira, sobre um plinto, no chão… Quando você chegou também senti que a conhecia de algum lado. Será possível ter-me cruzado  consigo num museu? Sim, lembro-me agora com nitidez de a ver numa exposição do senhor Duchamp. Será possível? Que trabalho maravilhoso! Sabe que o original desapareceu? Aquela Roda de bicicleta era uma cópia… gostei tanto que nem me importei com esse detalhe, pois se o próprio senhor Duchamp a assinou… quem vai a Lascaux também não vê as gravuras reais… são imitações… e não têm assinatura! Era mesmo parecida consigo: uma roda de bicicleta virada do avesso em cima de um banco… e também lhe faltava o pneu… se calhar foi roubado… roubaram-lhe o seu?

Rdb: O senhor Brito teve a ideia de fazer uma versão com pneu, mas nessa ocasião não conseguiu juntar o dinheiro suficiente. Sabe, dona Prenda, o senhor Brito já me tinha falado do senhor Duchamp. Gosta muito dele. Chega mesmo a fazer uma ou outra obra inspirada nele, que era muito amigo do senhor Man Ray. Aposto que ignorava esta situação… Conheceram-se no chalé do casal Kreymborg, em Nova Jérsia, do outro lado do rio Hudson. Foi o senhor Arensberg que promoveu o encontro…

P (interrompendo bruscamente a Rdb):… Sim… essa história também me foi contada pelo senhor Brito. Não a ignorava… e digo-lhe mais, cara Roda, recordo-me de ele me contar que o senhor Duchamp e o senhor Man Ray mal falaram entre si nessa ocasião: um tinha algumas limitações no seu inglês, o outro não pescava nada de francês… (ri-se sozinha) Naquela época andavam no ar as ideias anarquistas do senhor Stirner. Deixe-me dizer-lhe que você também é muito bem acabada… faz-me lembrar um monge a meditar… parada sobre um banco, você e a sua sombra. Que bela imagem, esta, a da união de um lugar para nos sentarmos com uma roda de pernas para o ar! Quietude e movimento captados numa figura congelada no tempo!

Rdb: Sim… sim… o senhor Duchamp e o senhor Man Ray foram grandes amigos. Saíam muito à noite… gostavam de comer ovos mexidos com compota de maçã. O senhor Man Ray chegou mesmo a fotografar o senhor Duchamp com uma estrela rapada na cabeça. E também captou uma imagem a que chamou “Criação de pó", onde se observa o “Grande vidro"… Sempre que olho para essa fotografia recordo-me das linhas de Nazca… estranha paisagem vista por uma ave.

(ao longe, no cimo da rua, vê-se o Suporte de garrafas a aproximar-se)

Suporte de garrafas (para si mesmo): Valha-me Deus! Vou chegar muito atrasado!

(o Suporte de garrafas chega à porta do Sismógrafo).

Sdg: Pelas minhas orelhas e pelos meus bigodes! Que tarde se está a fazer!

P: Você não se parece nada com um coelho branco…

Rdb: Realmente! 

Sdg: Boa tarde, minhas senhoras! Desculpem-me, estava a decorar uma fala para uma peça de teatro… Julguei que nunca mais chegava… estou muito atrasado?

P: e Rdb (em simultâneo): Boa tarde.

P: O senhor Brito está numa reunião.

Sdg: Não consigo perceber a sua mania da pontualidade britânica… nem sequer a sua preferência pelos relógios suíços, dos antigos, daqueles que se tem de dar à corda. Sabem do que estou a falar, não sabem? (silêncio) Achava mesmo que conseguia chegar antes do senhor Brito, pois ele foi para a cama já o dia estava a despontar, depois de uma grande patuscada com os amigos… acabaram com a garrafeira… até os Barca Velha de 1966 beberam… os de 1991 já tinham ido à vida há uns dias… como os Pêra Manca de 1997… Terminaram todos nus na piscina a gritar Budonga a plenos pulmões, isto no meio do miar de gatos em pleno cio… Por  mim, aquilo tinha acabado antes de começar… Budonga… Budonga… Budonga… Um deles até vomitou, imaginem! Como se não bastasse, decidiram ainda ir para o campo fazer tiro ao alvo com as garrafas. Partiram-nas todas com chumbo, para mal dos meus pecados, que assim fiquei, uma vez mais, a secar sozinho. Budonga… Budonga… Budonga… mas que raio de civilização eles foram inventar…

Rdb: Não estariam antes a dizer Buda longa? Um desejo de uma vida longa para o Dalai Lama? Conhecem a mensagem dirigida por Antonin Artaud a Thubten Gyatso, publicada em 1925, na revista A Revolução Surrealista? “Ensina-nos, Lama, a levitação material dos corpos e como evitar ser retidos pela terra" [ Enseigne-nous, Lama, la lévitation matérielle des corps et comment nous pourrions n'être plus tenus par la terre.]Deviam estar a levitar e aproveitaram para saudar a estrela da manhã, Vénus…

Sdg: Nã… Aquilo era mesmo uma dionisíaca rural… fazia frio e puseram-se em fila, num cortejo fálico, uma faloforia… um deles começou a pular com uma única perna sobre algumas garrafas de vinho feito de vinhas velhas e colhido em noites de lua cheia… sorte em a coisa não ter dado para o torto… só vidros partidos e um corte num dos pés… Budonga… Budonga… Budonga… 

P (com ar empertigado): Tenho pena de não ter sido convidada para a procissão… Gostava tanto de ter rasgado umas quantas roupinhas… isto antes deles se terem lançado para dentro da piscina, claro… com o frio que fazia até admira ninguém se ter constipado.

Sdg: Pena tenho eu, caras amigas. Há anos que não sinto uma garrafa nos meus braços. O perfume do vinho consumido é um dos grandes prazeres de uma vida. Com gente assim, nem sequer posso sonhar em voltar a sentir uma gota de um Porto de 1863, a minha memória mais vívida, cheirada ainda antes do precioso líquido daquele ano ter sido engarrafado em “demijohns": que néctar, minhas queridas… tenho uma dívida de gratidão para com o senhor Brito, por esse momento inesquecível, único…

(P: e Rdb entreolham-se com cumplicidade)

P: Está a pensar o mesmo que eu?

Rdb: Creio que sim…

P: Digo-lhe?

Rdb: Força...

P: Caro Suporte, por acaso não terá sido feito pelo senhor Duchamp?

Sdg: Não sei onde foi buscar tal ideia. Fui achado pelo senhor Brito, que me adoptou assim que me pôs os olhos em cima: amor à primeira vista. O senhor Brito tem por mim um afecto em tudo semelhante ao que nutre pelos seus inúmeros gatos. Quando passa muito tempo sem me ver, chama-me “suportezinho”…

P: Essa história é em tudo idêntica, com excepção da passagem mais íntima – que, diga-se, chega a ser ridícula –, àquela que o senhor Brito me contou acerca do senhor Duchamp, o qual adoptou um suporte para 50 garrafas, assumindo a sua paternidade.

Sdg: Sim, também fui informado cerca desse assunto pelo senhor Brito, que, pelo menos, tem a vantagem de nunca ter-se vestido de mulher e adoptado um pseudónimo género Oorquídea da Vida…

(chega a Guilhotina)

P: (com alguma agressividade, virando os seus picos afiados para a Guilhotina, antes desta poder cumprimentar os restantes objectos) Já fomos apresentados?

Guilhotina: Só se foi numa outra vida… Boa a tarde a todos.

Rdb e Sdg: Boa tarde.

Sdg: Acredita na reencarnação?

G: Às vezes tenho a sensação que fui um “Grande Vidro"… O senhor Brito explicou-me que esse é o nome de um trabalho realizado pelo Senhor Duchamp, contudo disse-me também ter existido um outro senhor, de seu nome Joseph-Ignace Guillotin, que terá feito renascer a minha utilidade durante a revolução francesa. Dizia ele, o senhor Guillotin, que a morte por decapitação era mais humana do que a causada por um enforcamento ou pelo uso de um machado. E já agora (dirigindo-se especificamente a P:, com um desdém de arrepiar mesmo o mais corajoso), sou uma obra de arte, não fui apanhada no lixo, adquirida numa loja, nem adoptado como vocês… 

P: Só vejo ossos… 

Rdb: É mas é uma pobre viúva… falta-lhe tudo… ficou apenas a moldura… até os celibatários abandonaram o barco…

P: Lembro-me de ter visto uma figura com o seu perfil mas mais nova e já com algumas rachas, num museu. Paris? Estocolmo? Filadélfia?

Sdg: Filadélfia.

Rdb: Existem algumas cópias… o senhor Hamilton fez uma, o senhor Linde outra… os estudantes dos senhores Yokohama e Tomo, outra mais. Insatisfeito com a primeira versão, o senhor Linde construiu uma nova peça com a ajuda dos senhores Samuelsson e Stenborg…

Sdg: Há ainda a de Manneville-sur-Risle.

Rdb: É verdade, estava a esquecer-me dessa.

G: Tantas assim?

Rdb: Pois, não há volta a dar: a tentação é muita.

G: E o que dizia o senhor Duchamp acerca do assunto?

Rdb: O senhor Duchamp dizia que as cópias não substituíam o original.

Sdg: “A copy remains a copy". Lembro-me destas palavras como se fosse no primeiro dia em que as ouvi da boca do senhor Brito, precisamente numa explicação acerca do senhor Duchamp.

Rdb: Fiquei muito impressionado com essa aula. Nela aprendi que o senhor Duchamp apenas certificou como cópias as peças do senhor Hamilton e do senhor Linde, neste caso a primeira versão… Existem outras palavras que servem para classificar as obras realizadas pelo senhor Duchamp a partir dos seus próprios originais: réplica, reconstrução, edição. A aparência é o que mais conta. Quanto mais parecida com o original, acrescentando-se a frescura de uma coisa acabada de fazer, melhor… chama-se a isto perfeição.

(Sem que ninguém desse conta, o senhor Fernando Brito seguia a conversa com atenção desde há algum tempo. Agora, vendo o diálogo a azedar, e prevenindo algum comportamento que pudesse danificar uma peça, interrompeu aquela farsa, mais parecida com um auto de Gil Vicente)

Fernando Brito: Meus queridos pastiches ou acabam com esta tourada ou deixo-vos fora da exposição. Julgava que vos tinha ensinado a comportaram-se em público. Vejo que é pura ilusão minha… Mais: os Budongas já estão instalados desde ontem e não causaram nenhum distúrbio: deve ser do cansaço acumulado ao longo de seis mil anos. Lol. E, por favor, mantenham o distanciamento social.

(F.B., depois de fazer uma pausa, e enquanto cofia a sua barba, olha os seus trabalhos um a um, sentindo uma inexprimível satisfação interior. Contudo, uma certa inquietação tomou conta de si quando se deu conta que faltavam algumas das peças para a exposição)

F.B.: Alguém viu o Papá, a Cabeça de Touro e os horrendos expressionistas alemães?

Rdb, Sdg e P: (em coro, regozijando-se) Não!

P: Só deviam chegar daqui a alguns anos… Fazia uma bem melhor exposição só com a nossa presença, senhor Brito.

G: Posso cortar-lhe as pontas afiadas, senhor Brito.

F.B.: Silêncio! 

(O senhor Brito volta para dentro do Sismógrafo, deixando as suas peças sem palavras, entregues a si mesmas, numa deplorável manifestação de arte no espaço público, lugar para o qual não foram manifestamente concebidas. Dentro do espaço ainda se chega a escutar a voz do Arco-íris)

Arco-íris: Senhor Brito, antes de abrir a exposição pode tirar-me da caixa para aspirar a alcatifa? É que ela está um pouco suja e assim o meu brilho não é o mesmo para o visitante…

Fim do primeiro acto.

Cai a cortina sobre o palco.

Exposição
27 Jun – 1 Ago 2020

Inauguração
Sábado, 27 de Junho de 2020, 15h00

Entrada gratuita