SEBASTIÃO RESENDETempos em Falta

Exposição
27 Nov 2020 – 9 Jan 2021

Inauguração 
Sexta-feira, 27 de Novembro de 2020, 15:00

Entrada Gratuita

“… onde o tempo se não conta por medida.”

Óscar Faria

A terceira exposição de Sebastião Resende no Sismógrafo é acerca de um tempo que falta, que faltou, seja por razões da reforma do calendário, no século XVI, seja pela estranha omissão da palavra amanhã/ tomorrow num dicionário bilingue do século XX. Embora o alcance de ambas as situações seja distinto – o primeiro caso resulta de decisões político-religiosas, enquanto o segundo se deve a uma enigmática decisão ou erro não detectado durante o processo de impressão–, elas tocam-se de um modo estranho, pois neste período de suspensões de direitos em que vivemos, esse desaparecimento dos dias diante dos nossos olhos ecoa numa espécie de futuro adiado porque ele também confinado pelas decisões do presente.

O artista propõe assim uma reflexão – essa paragem no tempo que a arte favorece – acerca dos modos como quer a política, quer o sujeito, indeterminado no caso do dicionário, interferem nas nossas vidas. Esse convite é feito com recurso aos habituais meios de expressão de Sebastião Resende: a escultura, a fotografia e o desenho, passando ainda por uma série de 10 pinturas nas quais se recupera, sob a forma de estandartes e segundo um sistema de notação já por si usado anteriormente, cada um dos dias que desapareceram do nosso calendário no mês de Outubro do ano de 1582.

Não foi fácil, no século XVI, implementar uma decisão tomada já na distante sessão do concílio de Trento de 1562-63. Passaram-se, pois, cerca de vinte anos até que se passou directamente de 4 de Outubro de 1582 – data das festividades dedicadas a S. Francisco –, para o dia 15 do mesmo mês. Foi Gregório XIII que assinou a bula papal pela qual os países católicos se passavam a reger pelo novo calendário, designando-se desde então por Gregoriano – a mudança, a primeira com carácter global, abrangendo vários continentes, só chegou a algumas nações protestantes quase dois séculos depois, como é o caso da Grã-Bretanha, que só o adoptou em 1752.

Hoje, as mudanças temporais gerem negócios feitos a uma velocidade indiscernível para o humano. Os horários de abertura e de fecho das bolsas podem ajudar a prever um cataclismo económico do outro lado do mundo, levando a decisões que provocam crises de consequências devastadoras, como foi o caso da crise financeira de 2007-2008, cujos efeitos ainda se fazem sentir na actualidade. E o tempo não pára. Nunca parou e assim, salvo prova em contrário, continuará a exigir essa nossa assombrosa vontade de superação que pode tomar a forma de uma escultura, um texto, uma música, actos de criação determinados a fixar a efemeridade de uma existência.

Ainda por estes dias recebi uma mensagem no meu telemóvel que me pedia a acção de “actualizar fusos horários", acrescentando que tal aconteceria quando reiniciasse o aparelho. Confesso que fiquei algo perplexo, pois a mudança para a hora de Inverno já tinha acontecido há várias semanas. Pensei: será que nos vão tirar dias? E imediatamente coloquei a hipótese contrária: se calhar, amanhã, já é 2021 e vamos acordar deste pesadelo viral – e aqui não só pensava nas doenças, mas também em tantas matérias nas quais fomos sendo enredados ao longo dos séculos: guerras, alterações climáticas, preconceitos, desigualdades sociais, injustiças laborais, etc.

Resolvi, portanto, fazer a actualização requerida e, enquanto esperava pelo fim da operação, a minha atenção foi sendo captada pela fotografia que nesse dia ocupava o ecrã do telemóvel – todos os dias surge uma nova imagem, uma opção possibilitada pelo próprio aparelho. O que me despertou a atenção nesse instantâneo foi o facto de ele juntar numa visão nocturna, esverdeada, um imenso céu estrelado e uma espécie de monumento megalítico, do qual só se podia observar os contornos e a mancha escura dos seus volumes, em contraste com o fundo boreal da cena.

Ali, no ecrã do telemóvel, o passado pré-histórico e o presente digital pareciam prometer esse amanhã que faltou a tanta gente. Contudo, se pensarmos melhor, ali o futuro também era inexistente. Tudo não passava de uma ilusão, pois nem sequer consegui aceder à legenda da imagem, nem tão pouco perceber se se tratava de uma cena real ou virtual, gerada com recurso a um computador.

Essa foi também a forma de preparar esta exposição. Pela primeira vez, ao longo dos mais de vinte anos em que tenho colaborado com o artista hoje radicado na periferia de Évora, não tive a oportunidade de ver os trabalhos “ao vivo". Tudo foi feito com o recurso ao computador e ao telemóvel, com a excepção de um almoço de Verão, durante o qual escolhemos qual o corpo de trabalhos mais adequado para a mostra do Sismógrafo. Depois, trocamos emails, telefonemas, imagens e ideias. E assim foi ganhando consistência essa ideia de apresentarmos trabalhos relacionados com a ideia desse tempo que nos falta, um espelho doutras situações agora reveladas com recurso a diferentes objectos.

Na exposição de Sebastião Resende, é ainda a manualidade que surge como saída possível para a actual situação. O artista, com recurso a escassos meios – paus e vegetação seca colhidos no seu jardim – devolve ao mundo as palavras retiradas do dicionário: amanhã/ tomorrow. E assim também presta uma discreta homenagem a quem quis deixar uma secreta mensagem para os vindouros: o futuro não existe. O tempo que falta é preciso agarrá-lo já. Para que não se passem os dias à espera de respostas que porventura nunca hão-de chegar. E alguém/alguma coisa venha, na nossa vez, a fazer desaparecer uma semana, um mês, um ano das nossas frágeis vidas.

Nos dois desenhos da exposição, o artista amontoa os dez dias que deixaram de existir – sem que, de facto, tenham desaparecido. Essa compressão sobre uma folha de papel parece destinada a ser colocada numa parede como memorial de todos os tempos roubados ao humano. Ali, todas as horas pedem para ser esculpidas, pois essa será a única forma de serem resgatadas do esquecimento. Dez anos demorou Odisseu a regressar a casa. A sua viagem continua a ecoar nos nossos corações, que também acolhem o desassossego pessoano, escrito ao longo de vinte anos.

E é nesse livro, nesses livros, como nos ensina Teresa Rita Lopes, que podemos encontrar a resposta para a falha dos dias, a ausência do amanhã, o desaparecimento de uma data do calendário: “Viajei. Julgo inútil explicar-vos que não levei nem meses, nem dias, nem outra quantidade qualquer de qualquer medida de tempo a viajar. Viajei no tempo, é certo, mas não do lado de cá do tempo, onde o contamos por horas e dias e meses; foi do outro lado do tempo que eu viajei, onde o tempo se não conta por medida. Decorre, mas sem que seja possível medi-lo. É como que mais rápido que o tempo que vemos viver-nos.”

Este é o tempo. Os tempos. Em falta. Com eles, de entre a sua vivência, seja a do lado de cá, seja do lado do imensurável, surge a questão ética do adiamento das decisões fundamentais para a sobrevivência do planeta. Entregam-se as coisas ao seu destino – melhor dito, colocamos o futuro nas mãos de poderes irresponsáveis, que entre diversos assuntos gerem metadados e algoritmos sem prestarem contas a ninguém hipotecando as democracias – problemas novos e decisivos para o nosso futuro, a juntar às já antigas questões ambientais. O ar também se torna irrespirável e a diversidade da flora e da fauna vai diminuindo a cada ano que passa. Cresce a esperança de vida enquanto tiramos vida à Terra. Um paradoxo, que parece não ter fim.

Há um outro lado do tempo. É esse que não podemos perder. E também não deixarmos que nos tirem. Tal é o tempo da arte e desta exposição, a qual nos diz dessa desmesura que não se deixa agarrar. Esta mesma mostra onde, entre os dias que desapareceram e um amanhã omitido, emerge essa vontade de respigar os resíduos da natureza de modo a apontar uma saída, colorida, feita com todas as palavras ainda por inventar.

Folha de sala