O Ateliêr Verde no IC 19
Exposição
5 – 27 Out 2018
Inauguração:
Sexta-feira, 5 Outubro 2018, 17:00
Entrada gratuita
Emancipação e resistência: hortas suburbanas, espontâneas e “clandestinas”
Bruno Marques
Sem Título (série de desenhos para o Documento #2 – Ocupa)
Partindo do desejo de libertar o cinema do seu aparato físico presente em André Bazin e em Sergei Eisenstein, Alexandra do Carmo leva acabo uma “desmaterialização” do filme, transpondo a sua linguagem – as prerrogativas específicas que uma ontologia do média define –, para o suporte do desenho. Aqui o recurso a esta “velha” forma de expressão poderia muito bem ser vista como ferramenta útil de edição, à imagem do storyboard, usado como forma de “pré-visualizar um filme”. Mas trata-se precisamente do inverso. Em Alexandra do Carmo é o filme acabado que se converte em matéria que o desenho vai “remontar” e “(re)interpretar” no atelier.
Ecrã e desenho fundem-se enquanto pensamento. Nesse sentido, enquanto reveladores do próprio processo de montagem, os desenhos são “ecos” dos filmes que a artista vem produzindo. Como “frames” rarefeitos tirados de um contexto mais lato, neles vemos rostos com olhos vazios para que o espectador lá veja a possibilidade de um filme imaginado. Incorporando os princípios de edição do cinema mudo, diferentes personagens entram e saem de cena a fim de estabelecer diálogos sincrónicos com uma legenda que invariavelmente reproduz fragmentos de um storytelling que o trabalho videográfico registou enquanto “trabalho de campo”. Mas por oposição ao registo acelerado do cinemático – enquanto fluxo contínuo e imparável –, nestes desenhos Alexandra do Carmo pretende traduzir um tempo outro do fazer e do ver, que implica uma “digestão” auto-reflexiva e demorada desses mesmos conteúdos, homóloga à diferença que existe entre o tempo rápido do trânsito da cidade e o tempo lento da horta.
Documento #1 – O Alelier Verde no IC19,
Documento #2 – Ocupa,
Documento #3 – Feijão Colonial
Nos três filmes que apresenta, Alexandra do Carmo aborda a dimensão social e política das hortas clandestinas que povoam as margens do IC19 - Radial de Sintra,construídas com perseverança e resiliência por agricultores urbanos, maioritariamente africanos oriundos das antigas colónias portuguesas ou por gentes locais com passados ligados às antigas comunidades rurais. Mas enquanto Gustave Courbet – a quem ela faz alusão através da descrição daquela que será a mais ambiciosa obra do pintor francês, L’Atelier du peintre, allégorie réelle déterminant une phase de sept années de ma vie artistique, 1855 –, ainda dentro do paradigma da representação traz metaforicamente para dentro do espaço de criação tanto o meio social como todos aqueles que o influenciaram na sua “acção”, Alexandra do Carmo instala literalmente o seu atelier no meio das pessoas que fortuitamente encontra nos interstícios do mundo suburbano; põe-se entre aqueles que estão à “margem” para ouvir a sua voz.
A proliferação de hortas urbanas espontâneas configura, sem dúvida, uma prática que vem se enraizando e difundido como alternativa alimentar, mas também se afirma cada vez mais enquanto forma de vida, criando novos modos de interacção social. Podendo reclamar a reinvenção do quotidiano com uma maior consciência ecológica, o fenómeno contemporâneo das hortas sai definitivamente da esfera estrita do doméstico e da liberdade individual, convertendo-se num objecto decisivo para o debate sobre a transformação do espaço da polis – da cidade enquanto “coisa pública” –, modificando modos de vida comum e viabilizando alternativas ao paradigma, hoje em profunda crise, afecto à lógica tardo-capitalista, promotora da privatização/especulação selvagem do território, da hiperindustrialização da paisagem urbana e do consumo desenfreado.
Os vários relatos que se sucedem sobre os danos físicos e psicológicos que resultam da destruição das suas hortas denunciam as incongruências do sistema: a polícia assume que não pode proibir a prática da agricultura, ainda assim leva a cabo consecutivas operações de “limpeza” por ordem camarária. Em boa verdade, o Plano Director Municipal de Lisboa permite a ocupação de terrenos para a prática do cultivo. Mas a inexistência de leis específicas adequadas a cada caso, somada à permissibilidade tanto aparente como aleatória das autoridades locais, conduz a uma situação de regulação cega, autocrática e violenta.
E eis que se constrói o inevitável argumentário a favor do “marginal” e do “subalterno”, contra a discriminação económica, a segregação territorial e as demais formas de dominação típicas do colonialismo cooperativo contemporâneo.
Ao invés de colhermos os seus benefícios no nosso tempo presente, as hortas clandestinas continuam a não ser mais do que pequenos hiatos, fruto de décadas de um planeamento do território incapaz de atender aos espaços exteriores da cidade. Temporárias, vivem no limbo da urbanização adiada. São toleradas enquanto não se encontra para as mesmas uma solução “urbanística”. Ao invés de espaços assumidos como uma mais-valia comum e permanente, não passam de “não-lugares” à espera de uma decisão política autárquica, não raras vezes concretizada pela edificação das grandes superfícies comerciais, de que o hipermercado Continente é o símbolo mais imponente.
As hortas estão ali, mas ninguém olha para elas com olhos de ver. Uns ignoram-nas; outros preferem vê-las como simples lixo análogo à condição das “barracas” ou formas de habitação precária, invariavelmente tidas como focos de problemas sociais, de criminalidade e de violência.
Estas hortas suburbanas, à beira da estrada, são hortas sem lei. Mas resistem à hostilidade da rua, da polícia e do poder autárquico.
Enquanto denúncia da estrita associação entre actos de negação do “outro” e formas colonialistas ocidentais, Alexandra do Carmo rompe com o estado de “invisibilidade” da horta clandestina suburbana. Mostra que estas, enquanto fenómeno político espontâneo e postura de acção sobre e no ambiente, constituem verdadeiros espaços heterotópicos de micro-resistência e de emancipação pós-colonial, face a uma endémica segregação resultante da ditadura da propriedade e do capital. Daí que a artista proponha uma contra-visibilidade como forma de promover um olhar mútuo e interessado sobre o outro, neste caso, sobre o cidadão “precário”, marginal e subalternizado; gesto que permite abrir a possibilidade de o integrar numa mesma comunidade imaginada de que tanto Eu como Ele fazemos parte de pleno direito.
Alexandra do Carmo vive e trabalha em Lisboa, frequenta o doutoramento em Estudos Artísticos na Universidade Nova de Lisboa FSCH, estudou no Whitney Museum Independent Study Program, e no Pratt Institute em Nova Iorque e no ar.co em Lisboa. Projectos mais relevantes: Studio Socialis 2014, na galeria Carlos Carvalho (GCC), Tudo foi captado (mesmo os movimentos do cabrito), 2011, na galeria Quadrum, Lisboa, Office/Commercial 2008 GCC; A Willow (Or without Godot), 2006, no Irish Museum of Modern Art. A sua prática artística centra-se no ateliêr como campo conceptual de estudo; um filtro através do qual e com o qual investiga a interdependência entre a artista e o espaço público, revelando as dinâmicas, condições e limites da autoria.
Exposição
5 – 27 Out 2018
Inauguração:
Sexta-feira, 5 Outubro 2018, 17:00
Entrada gratuita