Catarina Lopes Vicente,
Clarice Cunha,
Dalila Gonçalves,
Izumi Ueda Yuu,
Jaime Fernandes,
Joana Garrido
Exposição
17 Dez 2022 – 21 Jan 2023
Catarina Lopes Vicente, Clarice Cunha, Dalila Gonçalves, Izumi Ueda Yuu, Jaime Fernandes, Joana Garrido
"Olhar para o céu como um guia não é nada de novo. Há planetas, estrelas, asteróides, cometas, meteoróides, satélites naturais. Há o que se sabe e o que se desconhece; há a luz e há escuridão; buracos negros, supernovas, galáxias. Há pássaros e espinhas de peixe; sapatos, meias, luvas e roupa interior; texturas, padrões, esponjas e sabão azul; pedras e terra; linhas e uma vaca que se coça na penumbra. E, por entre estes elementos, desenhou-se uma constelação a que chamamos “Luas e águas”, um projecto em formato de exposição que se materializa nas obras de Catarina Lopes Vicente, Clarice Cunha, Dalila Gonçalves, Izumi Ueda Yuu, Jaime Fernandes e Joana Garrido.
Da mesma maneira que não sabemos a razão exacta para o posicionamento de uma estrela ou de uma lua, o atlas de artistas que compõem este projecto resulta de acontecimentos inesperados e improváveis, que nos conduziam a sucessivas reflexões para onde quer que fôssemos: para o atelier, para a rua, para um café, para a Vandoma.
Conversamos sobre o desconhecido, que vive tanto em cima, como em baixo. Olhamos para a lua—que não é a mesma coisa que ter lá a cabeça—e imaginamos os mares da sua superfície, que são, na verdade, um chão cinzento, pedregoso, revolto pela lava solidificada e cheio de transformações. E, cá em baixo, as águas, elemento maior do que nós, por sermos nós ela também. As águas escuras do mar são tão ou mais desconhecidas do que o céu. E o chão do Sismógrafo, outrora vermelho, tal como o centro da lua, transformou-se em superfície lunar. É a partir deste chão que as peças se apresentam.
Mas o propósito desta selecção de trabalhos não é o de nos levar a um qualquer cenário espacial ou de ficção científica. Não. Muito pelo contrário, o que se propõe é pensar o fazer no mundo, no quotidiano, na vida e até na morte. Trata-se também de cumplicidades e afinidades entre pares.
O trabalho de Izumi Ueda Yuu diz-nos isso mesmo. Sapatos de Caligrafista, obra moldada em papel japonês Kozo, é, como a própria artista nos diz, dedicada a quem "segura um pincel e desenha uma linha". Izumi sentiu-se atraída por esta forma quando se deparou com a tradição de calçar os mortos com sapatos de papel, antes de serem cremados. Daí em diante, esculpiu centenas de sapatos, num impulso para o qual não encontra explicação. São fortes e simultaneamente frágeis, carregados de uma força anímica que se transporta também para a gravura Próximo da Pele, onde a indumentária, tão ligada ao nosso quotidiano, ganha igual intensidade.
As obras de Catarina Lopes Vicente constroem-se de gestos, manobras, tempos e processos. Condensam um vasto atlas de formas anónimas e objetos, que migram para desenhos, linhas e blocos de cor. São monotipias, simultaneamente planas e tridimensionais, profundamente escultóricas. A relação com o papel é muito maior do que o olho percepciona à primeira instância: estes desenhos dão espaço ao enigma.
A relação de Clarice Cunha com os objetos é de uma outra dimensão: reúne-os, cataloga-os e constrói-os. Permeadas por uma intuição declarada e um fascínio pelas texturas e materiais, as suas esculturas reflectem sobre a interferência humana no mundo. Composições feitas de elementos que imitam e dos próprios originais, todas revelam o consumo irreflectido do presente e as suas consequências: nas ruas da cidade, florestas, praias, montanhas e em todos os que nelas habitam. É o caso de Monumental descartável (Natural gemstones) ou das peças do projecto Cinquenta ações para um período de isolamento social, criadas num momento em que a noção de comunidade parecia remota e a precisar de ser reescrita.
O Pico da Noite é o título da série que integra as duas fotografias que Joana Garrido apresenta em Luas e águas. Fruto de uma das suas muitas expedições exploratórias, em que a câmara é uma extensão do braço da artista, as imagens chegam do reflexo e do olho sensível. Fotografias nocturnas, carregam uma aura que só a penumbra proporciona, trazendo para a exposição o gesto e o corpo dos mais-que-humanos; uma vaca, apanhada no instante em que se coçava, lembra-nos o sublime nos momentos mais fugazes. A outra imagem abre-se à interpretação: o que brilha por detrás das rochas? Uma linha, uma bengala?
Dalila Gonçalves convida-nos a pensar o corpo, a partir de dentro. Suspensos por um fio de ouro, pendem dois dentes. Recorda-nos a infância, quando dos dentes de leite se faziam adornos de ouro. Uma memória do crescimento que se despegou do corpo, mas que a ele se mantém próxima. Com o nome Pós Juízo, a peça constitui-se por um dente de leite e outro do siso. Como uma balança, pesa mais o que condensa a razão. Dalila apresenta, ainda, dois longos corpos de peixe, esqueletos feitos de porcas borboleta (que, por força da nomenclatura das partes que o compõem, evocam uma profusão animal ainda maior). Estes longos animais aquáticos, metalizados, estão suspensos do tecto, paralelos. E a sua disposição, um de cabeça para cima e outro de cabeça para baixo, remete-nos para um círculo contínuo de reformulação e metamorfose, sublinhado pela componente aquática, própria do habitat natural, onde se pesca e se é pescado, numa acção síncrona de presa e predador.
E por fim chegamos aos desenhos de Jaime Fernandes. Começou a desenhar aos 66 anos, quatro anos antes da sua morte, em 1969. Nunca expôs em vida e, do que se sabe, tampouco conviveu com artistas. A sua vida foi permeada pelo trabalho rural ao lado de Evangelina, sua esposa, até ser internado no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, onde passou o resto da vida, mais de três décadas. Inesperadamente, a urgência de desenhar insurge, dando uso aos poucos recursos que tinha para o fazer: esferográfica, marcador e papel. No seu imaginário habitavam animais, figuras humanas ou antropomórficas. Saiam-lhe das mãos muitos pássaros. Talvez fosse uma forma de lançar a liberdade que não tinha, pela enclausura do panóptico. Os homens-vigia, sempre presentes, também aparecem nos seus desenhos, trazendo-o à realidade do chão. “Morrereis como estes retratos”, dizia. E, nesta exposição, apresentam-se três desenhos onde o animal prevalece. Dos olhos, poderíamos dizer humanos, não fosse isso retirar força ao reduzi-los aos nossos.
Nesta espécie de cosmovisão, cada trabalho contribui com perspectivas distintas, que em momentos se tocam e noutros se afastam. Uma narrativa em abismo, feita de realidades sobrepostas, cruzadas ou intersectadas. O título, encontramo-lo nas palavras de Sophia de Mello Breyner, quando escrevia a Teixeira de Pascoaes. Há, nesta exposição, a mesma admiração que encontramos entre estes poetas. E porque os elementos serão sempre maiores do que nós, vemos no fazer destas pessoas, como nos diz Sophia, o mesmo puro emergir: luas e águas." Hernâni Reis Baptista, João Pedro Trindade e Rita Senra
Catarina Lopes Vicente (Lisboa, 1991) vive e trabalha no Cacém, Sintra. É mestre em Artes Plásticas pela Escola Superior de Artes e Design (Caldas da Rainha, 2015). Em 2018, ganhou a Bolsa de Artes Visuais da Fundação Calouste Gulbenkian. Expõe regularmente desde 2012. Colecciona, há já algum tempo, objectos e imagens que lhe servem de biblioteca pessoal e com os quais o seu trabalho em papel estabelece relações. https://catarinalopesvicente.weebly.com/
Clarice Cunha (São Paulo, 1985) vive e trabalha no Porto. É mestre em Artes Plásticas com especialização em Escultura, pela Universidade do Porto (Porto, 2022) e licenciada em Arquitectura e Urbanismo pela Universidade Mackenzie (São Paulo, 2010). A sua prática artística articula diferentes camadas de experiência e leitura do ambiente construído. Através de uma linguagem plástica híbrida (instalações, intervenções, esculturas, fotografias, colagens), Clarice procura que os seus objectos reflictam sobre a presença humana na Terra e sobre como a intensa atividade industrial tem vindo a alterar a natureza deste ambiente. http://www.claricecunha.com.br/
Dalila Gonçalves (Castelo de Paiva, 1982) é licenciada em Artes Plásticas-Pintura (FBAUP 2005) e mestre em Ensino de Artes Visuais pela FBAUP e FPCEUP (Universidade do Porto, 2009). Concluiu, na mesma universidade, o primeiro ano de Doutoramento. Em 2008, foi seleccionada para a II edição do Curso de Fotografia do Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Artística. Entre 2010 e 2011, trabalhou em Barcelona no atelier de Ignasi Aballí como bolseira do programa Inov-art. Foi artista em residência na Inclusartiz (Rio de Janeiro, 2014), no Programme KulturKontakt (Viena, Áustria, 2017); na Pivô- Arte e Pesquisa (São Paulo, 2018) e na Fundación Marso (México DF, 2020). No seu trabalho, é visível um processo de dissecação, de descoberta de objectos, materiais e matérias - um desbravar ora da sua plasticidade, ora da sua história, ora da sua função, ou de tudo em simultâneo. Dentro de uma prática com um forte pendor processual, usa o vídeo, a fotografia, a cerâmica, a escultura e a instalação. Expõe regularmente em instituições e galerias dos EUA, de diferentes países da Europa e da América do Sul, onde está representada em colecções públicas e privadas. https://dalilagoncalves.com/
Izumi Ueda Yuu (Yokohama, 1948) vive no Estoril desde 2015. Izumi frequentou o Kuwasawa Design Institute, Tóquio e obteve o BFA em Escultura, no Maryland Institute of Arts of College em Baltimore, EUA. Recebeu bolsas artísticas individuais tanto do Maryland State Art Counsel como do Baltimore City Art Counsel. Foi artista em residência na Fundação Obras Holanda & Portugal, no OUTOTSU Printmaking Studio e na Awagami Factory, Japão. Foi finalista do Luxembourg Art Prize 2019. O seu trabalho é sobre a ligação entre a arte e a vida quotidiana. A Izumi está interessada na ideia animista de que as coisas que usamos no nosso dia-a-dia podem ser revigoradas, respeitadas e amadas, criando imagens e objectos com formas inspiradas na vida quotidiana. https://www.izumiuedayuu.com/
Jaime Fernandes (Covilhã, 1899 - Lisboa, 1969). Jaime começou a desenhar quando tinha mais de sessenta anos e estava internado há mais de trinta no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa. Os seus desenhos realizam-se, sobretudo com esferográficas coloridas, a partir de uma densa trama de linhas, criando um mundo povoado por animais imaginários, figuras humanas e antropomórficas. Jaime expressou-se também através de textos, nas cartas endereçadas à sua esposa ou escritos nos versos dos desenhos. O reconhecimento do valor artístico da obra de Jaime só se deu após a sua morte. Em 1980, setenta e quatro desenhos de Jaime puderam ser vistos numa exposição na Fundação Calouste Gulbenkian, a maior dedicada ao autor; um ano depois, cerca de cinquenta desenhos figuraram na Bienal de S. Paulo, na exposição “Arte Incomum”. A partir de então, os desenhos circularam por Portugal, Estados Unidos e Europa e foram integrados em diversas publicações e exposições, nas quais a sua obra tem sido reconhecida como uma das mais significativas da história da arte bruta europeia. Em 2021, o Centro de Arte Oliva apresentou a exposição Jaime: “vi uma cadela minha com lobos”.
Joana Garrido (Lisboa, 1993) vive e trabalha entre o Porto e Lisboa. Frequentou o curso de fotografia no Ar.Co, de 2013 a 2018. Trabalha com fotografia digital a cores, explorando ambientes soturnos na cidade, durante a noite, através de edifícios, ruínas e natureza. Evidencia os cenários urbanos “reais” com restos de natureza a querer manter-se; falsamente despovoados, falsamente vazios. Iluminados pela luz monocromática dos candeeiros de rua ou pela escuridão da noite. São encontros de objectos, plantas e estruturas danificadas. Matérias transformadas pelo homem. Lugares não-virgens, transitórios. https://cargocollective.com/joanahintzegarrido
Exposição
17 Dez 2022 – 21 Jan 2023