Longe. Desvelado. Ao vento.
Exposição
5 Set – 3 Out 2020
Inauguração
Sábado, 5 de Setembro 2020, 15:00
Entrada gratuita
Sempre por nascer
Óscar Faria
No centro da sala imaginei um atanor, esse forno cósmico usado para manter uma temperatura uniforme de forma a dar tempo a que transmutação acontecesse. Tudo irradiaria a partir desse núcleo. As sombras nas paredes apenas iriam confirmar o acontecimento: uma subtil mudança atmosférica, uma ligeira alteração da cor, uma insignificante expansão do espaço – pequenos nadas apenas medidos na progressão dos anos. Tudo era idêntico, mas essas metamorfoses microscópicas faziam toda a diferença.
A letra “a", por exemplo, indicava um início, que se repetia até se dissolver, perdendo-se assim a sua origem. Os títulos sucediam-se e estavam sempre a falhar, porque aquilo que agarraram depressa dava lugar a um outro estado, mais sólido, mais líquido. No fundo, podia descrever-se este lugar a partir do seu ambiente cársico. A corrosão das rochas vive nos desenhos, como estes habitam a sucessão dos dias, por vezes solares, muito frequentemente de persistente chuva. A noite, essa, era cortada pela velocidade.
Uma Suzuki, pensei imediatamente, abrindo desde logo uma clareira para acolher as rotações de um pensamento milenar: “O mundo interior não tem limites e o mundo exterior também é ilimitado. Nós dizemos ‘mundo interior’ e ‘mundo exterior’, mas, na verdade, só há um único mundo. Nesse mundo sem limites, a garganta é uma espécie de porta de vaivém. O ar entra e sai como alguém passando por uma porta de vaivém. Se você pensa ‘eu respiro’, o ‘eu’ está a mais. Não há um você para dizer ‘eu’. O que chamamos ‘eu’ é apenas uma porta de vaivém que se move quando inalamos e exalamos. Ela simplesmente se move, eis tudo. Quando sua mente está pura e calma o suficiente para seguir esse movimento, não há nada: nem ‘eu’, nem mundo, nem mente, nem corpo. Só uma porta que vai e vem.”
Passei dias a tentar decorar estes desenhos. Como quem fixa uma fala no teatro, comecei por repetir cada linha, cada tonalidade, cada movimento, até sabê-los de cor. Associei cada um a uma música, uma forma também de os poder diferenciar através dos seus ritmos. Apri le luci, e mira (Vivaldi), Zefiro Torna (Monteverdi), Chi non sente (Riccardo Broschi), Vertigo (Joseph-Nicolas-Pancrace Royer), Territory (The Blaze), I contain multitudes (Bob Dylan), My Rajneesh (Sufjan Stevens), etc. De correr, aberta para as palmeiras e o pinhal, através do qual o mar ia e vinha, a porta deixava entrar o vento de NNO, entre 10 a 15 Km/h.
Uma Vespa, lenta como o Verão, zumbia no alcatrão, e leio: “Depositou o ar nas narinas e ficou/ o fio esticado de uma ponta à outra." Os desenhos escrevem. Desabam sobre palavras. Em catadupa. Com uma grafia que lembra a infância. E o “A" volta para nos fazer voltar ao início, a esse tempo sem temperatura, sem cheiros, que se desfia ao sabor de uma luz que vem do interior. Suzuki-Vespa: pólen que é transportado através dos papéis pousados sobre a mesa de trabalho. “Longe a montanha Desaparece/ no Branco. O Vapor/ deita-se. Devagar.”, lê-se outra vez. Os desenhos são paisagem: Hakuin Ekaku e Sengai Gibon.
Baixo os olhos e encontro a prova que o lugar onde estou foi outrora o fundo do mar. Mergulho e chego à superfície com as mãos cheias de sal, corais, algas e conchas. Trago também uma estrela do mar, um cavalo marinho, uma pérola e mexilhões. Sobre os cavaletes, o oceano é iluminado por um “A", que paira do tecto, um “A" minguante, no qual também cabe o chilrear dos grilos, o aroma adocicado das alfarrobeiras, que se mistura com o zimbro, o funcho-do-mar, a barrilha, a salgadeira e o pampilho-marítimo. A maresia traz também o cheiro do sargaço e o roncar dos motores das traineiras.
E a madrugada dilata-se entre aguadas e a liquefacção da letra fundadora. “Não há nada: nem ‘eu’, nem mundo, nem mente, nem corpo. Só uma porta que vai e vem.” O espaço, já devidamente aquecido pelo atanor, conserva as propriedades envolventes – humidade, pressão atmosférica, temperatura –, e começa tudo a ser consumido por esse fogo cósmico. A nossa consciência muda-se em desenho e este, por seu lado, metamorfoseia-se numa paisagem sem coordenadas geográficas, apenas possível de ser descrita por uma letra, o “A", que é uma montanha a desaparecer entre a bruma, ou por gestos que agarram as intensidades meteorológicas: daí as manchas de cor, os circunvoluções, as precipitações, os fios de luz, os riscos, as bolhas.
Certo dia, a Susanne fez-me chegar várias possibilidades para o título da exposição. Tive de escolher um. Ficou “Longe. Desvelado. Ao vento.” A mostra foi-se transformando num imaginado laboratório alquímico. Mesas, um andaime e uma escada acolhem assim os resultados das experiências de Susanne Themlitz: desenhos, xilogravuras, esculturas. Através deles confirma-se a lei hermética da correspondência: “O que está em cima é como o que está em baixo. O que está dentro é como o que está fora". Papel-pedra, tela, gesso, areia, lápis, tinta: tudo serve para fazer a natureza surgir transfigurada em arte. Há, na instalação, equilíbrios precários, frágeis como algumas obras agora reveladas. Existem também peças que potenciam analogias com o mundo mineral, enquanto noutras se pode ver um mapa estelar.
Outra característica a salientar em alguns desenhos é a presença de texto, que pode ser constituído quer por breves apontamentos com uma forte vertente poética, quer por minuciosas descrições da natureza e dos seus elementos. Não consigo deixar de ver estes trabalhos na continuidade da tradição da pintura de paisagem chinesa, a qual constituía, sobretudo entre os séculos XI e XVIII, uma forma de meditação acerca da primitiva cosmologia da Ausência e Presença. Nessas obras, assinadas por Fan K’uan, Chao Meng-fu ou Shih T'ao, os ideogramas surgem ao lado de pedras, céus, nuvens, montanhas e rios. As palavras completam assim a imagem, contudo ambos elementos sublinham apenas esse enigma escuro que nos lembra apenas não termos ainda nascido. Como diziam os antigos: “Sempre por nascer".
Tal como a obra de Susanne Themlitz, a nascer de cada vez que é vista. É que “não há nada: nem ‘eu’, nem mundo, nem mente, nem corpo. Só uma porta que vai e vem.”
Susanne Themlitz (Lisboa, 1968) estudou desenho e escultura no AR.CO, entre 1987 e 1993 e completou o mestrado em artes plásticas na Kunstakademie de Dusseldorf, Alemanha, em 1995.
O seu trabalho convoca estratégias de desenho, escultura, fotografia, vídeo, instalação e pintura. É através destes meios que desenvolve um mundo onírico.
O seu trabalho está representado em várias colecções, nacionais e internacionais, nomeadamente a Caixa Geral de Depósitos/Culturgest (PT), o Museu de Arte da Fundação de Serralves (PT), a Coleção Alfredo Hertzog da Silva (BR), a Fundação Calouste Gulbenkian (PT), a Fundação Carmona e Costa (PT), a Fundação EDP/MAAT - Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (PT), o Perez Art Museum Miami (EUA) ou o Museu de Arte Moderna de Santander (ES), entre outros.
Exposição
5 Set – 3 Out 2020
Inauguração
Sábado, 5 de Setembro 2020, 15:00
Entrada gratuita