Liebestod – Amor e Morte
Exposição
15 Abr – 14 Mai 2021
Liebestod de Vasco Araújo ou a maldição do amor romântico em quatro actos
Por que razão ainda somos vítimas das ilu1sões e desilusões do amor romântico? Esta é uma das questões que o vídeo e a instalação Liebestod de Vasco Araújo nos suscita. Apresentada pela primeira vez em 2019, em Baku, no Azerbaijão, trata-se de uma obra meta-operática. Duas lendas primordiais de amor trágico, perpectuadas na tradição oral e fixadas por poetas e trovadores há muitos séculos atrás, acabaram por dar o título a duas óperas emblemáticas. Tristão e Isolda e Leyli e Madjnun surgem lado a lado no seu filme, mostrando que, não obstante o “choque civilizacional” entre Ocidente e Médio Oriente – ou entre Cristianismo e Islão –, ambas constituem avatares de um mesmo arquétipo, senão de um mesmo modelo da psique humana.
Psicanalistas do Azerbaijão e da Alemanha foram convidados por Vasco Araújo para examinar e comparar as duas óperas em apreço. Respondem a provocações lançadas pelo artista sobre a definição do amor, a projecção do ente amado, o subsequente excesso de idealização, as possíveis correlações entre o enredo das duas óperas e as dificuldades que assolam os relacionamentos contemporâneos, assim como a respeito dos efeitos psicológicos inerentes ao choque entre ilusão e realidade.
Fazendo jus à ópera Leyli e Majnun, Liebestod estrutura-se em quatro actos. Como em toda a montagem, o vídeoconsubstancia uma sintaxe de justaposições. Enquanto estratégia de intensificação da experiência da representação, ao combinar fragmentos de duas óperas homólogas é criado um terceiro elemento, um “novo conceito” (cf. Eisenstein 1947, 4). A isso se acresce os intertítulos que, na boa tradição do cinema mudo, fornecem diálogo crítico que interpela o espectador. Segue-se, em cima disso, ainda as respostas das psicanalistas ao desafio lançado pelo artista. Essa sequência, esse confronto entre elementos homólogos (óperas) e heterogéneos (textos originais, interpretações operáticas, questionamentos críticos, comentários analíticos), ao mesmo tempo que cria diferentes camadas de ângulos e leituras, abre campo para que nos relacionemos com o texto operático de um modo eminentemente imersivo e pessoal.
Tudo partiu deste principio: não reduzir a figura do apaixonado a uma conhecida personagem, como se de um mero sujeito sintomático fosse, mas antes fazer ouvir o que na sua voz existe de simultaneamente actual e universal. Daí o recurso a este dispositivo que renuncia ao protocolo de vermos os cantores actuando no palco, para dar antes corpo à acção única de uma primeira linguagem, de uma linguagem primordial (sem metalinguagem). Substitui-se, portanto, a representação do discurso amoroso pela audição isolada do corpo que a profere, ou seja, assente numa voz descarnada, sem corpo, o que providencia transferências várias mediante um processo infinito de permutas e transversalidades. Com isso o artista devolve este discurso à sua pessoa fundamental, que é o eu daquele que assiste. A identificação não tem acepção psicológica; é uma pura operação estrutural: “sou aquele que tem o mesmo lugar que eu”, diz Roland Barthes (1995, 165). Sem as poses dramáticas, os gestos lânguidos e os olhares teatralmente profundos, sem o guarda-roupa excessivo e fantasioso; sem o cetim, o veludo delicado, os folhos, as luvas e os decotes, que artificiosamente atribuímos a uma dada época, tal movimento permite conhecer uma situação (e potência) da palavra na sua dimensão intemporal e trans-histórica. Ou seja: promove aquilo a que os especialistas da teoria do drama chamam de “identificação”. O sujeito identifica-se dolorosamente com qualquer pessoa (ou personagem) que ocupe na estrutura de amor a mesma posição que ele (cf. Barthes 1995, 165). Lançadas sobre nós como rajadas, essas palavras estão fora (dos corpos e) da narrativa; elas agitam-se, exasperam, lamentam-se, unem-se e afastam-se tão desordenadamente como numa súbita imersão no vaivém das poderosas vagas do mar. Capturados nas teias da trama, somos arrastados pela sua corrente, num movimento delirante.
Daqui ressalta que o aspecto mais profundo do mito é o poder que ele exerce sobre nós, de um modo geralmente involuntário. Ele actua quando a paixão é sonhada como um “ideal”; não temida como febre maligna, mas “imaginada como uma bela e desejável catástrofe” (Rougemont 1989, 20). Entroncamos nessa espécie de versículo, de estribilho, de ladainha, cegos pela “alucinação verbal”; mas essa frase mãe – de morrer por amor – faz ressoar uma conhecida enciclopédia da cultura afectiva, imensamente codificada e que ainda teima em persistir nas convenções sociais, nas estórias e imagens que estruturam as nossas fantasias e vivências quotidianas, espelhando uma realidade comum da existência humana que é profundamente contemporânea.
Histórias como a de Tristão e Isolda (que serviram de modelo matricial a tantas outras que se lhe seguiram) não nos ensinam outra coisa senão a procurar um ideal de perfeição que jamais poderá ser encarnado numa pessoa, condenando-nos ao ciclo vicioso mil vezes repetido de expectativas goradas, de amarguras e desapontamentos. Por isso, ao longo da peça, a angústia aumenta, observamos a sua progressão; ouvimo-la elevar-se, como figura inexorável sobre o pano de fundo da morte que se adensa na ruína do castelo, na floresta nocturna e na lápide do cemitério.
Explorando uma patética de justaposições, obliterando o corpo das personagens, introduzindo o comentário clínico e providenciando um storyboard em painéis dispostos nas paredes da mesma sala onde passa o filme, Vasco Araújo desmonta o artifício no qual assenta a retórica do drama. Enquanto exercício de desconstrução, se o artista expõe ao espectador os códigos, as falácias e contradições inerentes à narrativa e à encenação do espectáculo operático, o espectador, em compensação, entrega-lhe a inocência do seu imaginário, para que a sua consciência, a respeito das armadilhas do amor romântico, possa ser beliscada.
Bruno Marques
Vasco Araújo nasceu em Lisboa, em 1975. Concluiu a licenciatura em Escultura pela FBAUL., frequentou o Curso Avançado de Artes Plásticas da Maumaus em Lisboa. Integrou ainda programas de residências, como Récollets (2005), Paris; Core Program (2003/04), Houston. Em 2003 recebeu o Prémio EDP Novos Artistas, Portugal. Desde então tem participado em diversas exposições individuais e colectivas tanto nacional como internacionalmente: “Momento à parte”, MAAT – Fundação EDP, Lisboa, Portugal (2019); Vasco Araújo”, M-Museum, Leuven, Belgica, (2018); “Decolonial desires”, Autograph ABP, Londres, U.K. (2016); “Potestad”, MALBA – Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina.(2015) “Under the Influence of Psyche”, The Power Plant, Toronto (2014); “Debret”, Pinacoteca do Estado de S. Paulo, S. Paulo (2013); “Eco” Jeu de Paume, Paris (2008); “Em Vivo Contacto”, 28º Bienal de S. Paulo, São Paulo (2008); “Experience of Art”; La Biennale di Venezia. 51th International Exhibition of Art, Veneza (2005); “The World Maybe Fantastic” Biennale of Sydney (2002), Sydney. O seu trabalho está publicado em vários livros e catálogos e representado em várias colecções, públicas e privadas.
Exposição
15 Abr – 14 Mai 2021