Lengalenga
Exposição
12 Jan – 2 Fev 2019
Inauguração
Sábado 12 Janeiro 2019, 16:00
Entrada gratuita
Papéis, palavras, poemas: uma política sem fins
Óscar Faria
Existem cinco versões em português do “Ulisses”, de James Joyce. Três são assinadas por tradutores brasileiros, das outras, uma é da responsabilidade de João Palma Ferreira, que nasceu e morreu em Lisboa (1931 – 1989) – sendo esta curiosamente editada pela “Livros do Brasil” (1989), na colecção “Dois Mundos” – e a outra, mais recente, de Jorge Vaz de Carvalho, publicada pela Relógio d’Água (2013), onde, no episódio XII, a frase “Arrah! bloody end to the paw he’d paw” foi vertida em “Arre! que leve o diabo a pata que o patego pegava”, quase um trava-línguas, como este: “Ao longe ululam cães lugubremente à Lua.”
Numa dessas traduções, a de Bernardina da Silveira Pinheiro (Alfaguara, 2010), acha-se esta passagem, do episódio I, no qual Joyce cita uma das estâncias de um poema de Yeats, incluído, enquanto canção, na peça “The Countess Cathleen” (1892):
“Sua cabeça sumiu mas a lengalenga de sua voz ao descer ressoou para fora da escada.
– E basta de virar para o lado e meditar
Sobre o mistério amargo do amor
Pois Fergus comanda as carruagens de bronze.”
“[And no more turn aside and brood
Upon love´s bitter mystery
For Fergus rules the brazen cars.]”
Existem, pois, várias acepções para “lengalenga” – esta palavra pode ser igualmente traduzida para inglês por “rigmarole” – título da exposição de Rita Senra, que inaugura o novo espaço do Sismógrafo.
As lengalengas cantadas são uma das formas tradicionais da poesia popular, como é o caso das inúmeras variantes da onomatopeia “Tão-Balalão”, que tem como origem a imitação das badaladas de um pequeno sino:
Tão-balalão
Soldado ladrão,
Menina bonita
Não tem coração.
Tão-balalão
Senhor capitão,
Espada na cinta
Sineta na mão.
Uma das principais características da lengalenga é a facilidade em decorá-la, efeito obtido pela repetição dos versos, sobretudo com rima, durante brincadeiras infantis, como é ainda o caso das “cantilenas das escondidas”:
Bico bico sarrabico
Quem te deu tamanho bico
Foi a velha chocalheira
Que come ovos com manteiga
Os cavalinhos a correr
E os meninos a aprender
Qual será o mais espertinho
Que melhor se vai esconder
Lengalengas, trava-línguas, cantilenas. Outras formas da expressão popular podem ser também aqui convocados, como os provérbios ou os lugares-comuns, destacando-se nestes casos as recolhas realizadas por Manuel João Gomes para a editora Afrodite (1974 e 1986): “Melhor é roto do que alheio” ou “Não há maior tolice que viver pobre para morrer rico.”
Inspirada por estas realidades linguísticas, Rita Senra produziu uma nova série de trabalhos. Uma primeira característica é a repetição, tanto neste corpo de obras como nos restantes agora apresentados. Dessa insistência obsessiva, na qual assumem uma particular relevância as experiências realizadas com recurso a diferentes tipos de papéis, resultam variantes textuais, reveladas quer na frente, quer no verso destas poéticas criações. Nessas lengalengas, nas quais é possível detectar uma intenção política, como um comentário à actual situação vivida no Brasil, surgem inúmeras referências a animais, afinal uma forma de nos apercebermos não só do absurdo da existência, mas também da possibilidade de mudar essa condição, transformando assim o mundo:
“Se tu visses o que eu vi
para lá do atlântico
Era gente com olhos, com braços e
folhos
Gente com tripas e bem saber aos molhos
Era gente, gente mesmo - mas olha.”
As várias séries reveladas no âmbito de “Lengalenga” permitem-nos tomar consciência do processo de trabalho da artista. Experimental, obsessivo, na tentativa de encontrar esse tempo perdido algures na infância. Seja através de perfurações e recortes – neste caso de letras, de palavras, de textos –, seja com recurso à colagem, sobrepondo papéis de forma a criar ritmos e sombras, a obra de Rita Senra continua à procura de chegar a um lugar que a separe do ateliê. E daí esta sensação de esta ser uma exposição em aberto, na qual outras opções podiam ter sido tomadas, obtendo-se outros resultados, porventura mais eficazes do ponto de vista formal, mas menos verdadeiros nesta tentativa de mostrar como estes papéis são tão frágeis, que só o acto de os montar numa parede constitui uma arriscada tarefa: tudo aqui se pode romper, rasgar, enrolar.
Não faz mal, pois tudo aqui tem uma força única, singular. Há mesmo uma luz que atravessa esta “lengalenga”. Talvez por isso muitas das folhas de papel cebola, nomeadamente as séries verde e azul, podiam ter acabado, quais persianas, na montra do novo Sismógrafo, permitindo assim outras visões. Ali ficou apenas uma, como exemplo e hipótese de conversas. Absurdas ou não. Nesse sentido, a montagem tentou criar uma certa unidade entre as diferentes séries, tentando tirar partido quer de aspectos cromáticos, quer de escalas, quer ainda das subtis diferenças entre trabalhos semelhantes entre si. Tudo isto de modo a revelar essa inquietação intrínseca ao acto de mostrar a dúvida, a hesitação, a falha. É este o grande desafio desta “Lengalenga”, espécie de mantra, exercício de composição, convite ao silêncio.
“Havia um velho habitante de Aveiro
De comportamento bizarro e grosseiro.
Correu como um doido, levando agarrados,
Um em cada mão, dois leitões anafados,
Mas ao fim do dia voltou para Aveiro.”
In O livro dos disparates,, de Edward Lear, Mem Martins: Terramar, 1990. Texto português: Vera Pinto e Luís Manuel Gaspar.
Rita Senra (Barcelos, 1993) vive e trabalha no Porto. É licenciada em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto. Ao abrigo do programa Eramus+, integrou o estúdio de Jiřího Příhody - Akademie výtvarných umění v Praze; República Checa, 2015. Desenvolve o seu trabalho artístico nas áreas do desenho e da instalação, dando lugar a exposições - na sua maioria, exposições colectivas -,desde o ano de 2014. Desde 2016 que integra a equipa do Sismógrafo - um espaço de arte independente fundado pela associação cultural sem fins lucrativos Salto no Vazio. No início do presente ano, iniciou a sua colaboração com o colectivo de investigação teatral Confederação.
Exposição
12 Jan – 2 Fev 2019
Inauguração
Sábado 12 Janeiro 2019, 16:00
Entrada gratuita