L’ Éternité par les astres
Exposição
23 Mar – 20 Abr 2019
He runs after the facts like someone learning to skate
Óscar Faria
A exposição “L’Éternité par les astres” cita, no seu título, um livro homónimo escrito por Louis Auguste Blanqui em 1872. O revolucionário francês escreveu este texto na prisão- -castelo de Taureau, enquanto cumpria uma pena por se ter envolvido nos motins que tiveram lugar em Paris, dois anos antes. Nesta exposição reúnem-se obras realizadas desde 1992 até à actualidade. Trata-se, portanto, de uma selecção que teve em conta as diferentes linhas de trabalho do artista, não só em termos formais, mas também conceptuais, nomeadamente nas relações entre arte e literatura, arte e filosofia, e arte e política. A montagem procurou ainda responder a um dos desafios relacionados com as peças de Emídio Agra, pois muitas delas apenas revelam as suas diferentes “faces” através de um processo de desdobramentos conduzido pelo seu autor – refira-se que, em alguns casos, os objectos escondem peças de vestuário, as quais, depois de vestidas, numa operação próxima de uma performance, revelam uma dimensão poética, intuída mas invisível num primeiro instante. Joga-se, assim, com a contradição entre o valor de uso e o valor de exposição, quando temos um, perdemos o outro.
As obras são mostradas maioritariamente na sua versão dir-se-ia mais conservadora, pois ou lhes falta o movimento que elas ganham quando manipuladas ou surgem aos olhos do espectador como simples objectos, que escondem a sua vida interior, apenas possível de ser activada pelo artista, que, nessas acções, assume diferentes personagens – um fantasma, um pianista, um cego, ou um velho saltimbanco, neste caso uma alegoria acerca da postura do artista no meio artístico contemporâneo. Esta é apenas uma possibilidade de montagem: a hipótese de fazer acompanhar as peças de fotografias que de algum modo explicitassem as suas diferentes formas persistiu até ao fim. O enigma permanece e faz com que os trabalhos resistam à sua total apreensão pelo espectador. Em aberto fica a possibilidade de durante o curso da exposição acontecerem instantes de revelação desse algo que se esconde aos nossos olhos, podendo mesmo esse desvelar ser realizado no âmbito de uma publicação.
No processo de escolha das obras, teve-se ainda em conta o facto do artista se ter negado a mostrar o seu trabalho durante mais de vinte anos, tempo em que nunca deixou de produzir obra, como se pode constatar pelas datas das mesmas. Procurou-se assim fazer uma selecção de peças que revelassem a coerência interna de um percurso com quase trinta anos, tentando-se, através desta apresentação, criar um dispositivo próximo do fazer de Emídio Agra, sendo a mesa o principal elemento do pensamento associado aos objectos apresentados. Esse móvel, recorde-se, foi igualmente fixado por Kafka num célebre desenho realizado nas margens de um caderno de notas. Nele, podemos observar uma figura esguia sentada numa cadeira, com a cabeça e os braços pousados sobre o tampo de uma mesa, numa postura de descanso ou mesmo de alguém a dormir:
‘Mas afinal quando dorme?’ , pergunta Karl maravilhado, contemplando o estudante. ‘Dormir? Ah, sim... Dormirei quando terminar os estudos’. As crianças também vão dormir de má vontade: enquanto dormem, podem verificar-se acontecimentos que exigem a sua presença. ‘Não esquecer o melhor’ soa como advertência familiar numa obscura massa de antigas histórias, embora talvez não apareça realmente em nenhuma. O esquecimento, porém, diz sempre respeito ao melhor (...)¹.
O ambiente da exposição situa-se assim entre uma loja de antiguidades e um armazém de objectos usados. Um cenário onde se pode também imaginar ser possível fabricar os trabalhos agora revelados, pois eles parecem surgir de uma assemblagem de despojos da sociedade.
Enquanto que os interiores em que vivem os homens são o lar da catástrofe, os recantos da infância, lugares abandonados como o vão das escadas, são os lugares da esperança. A ressurreição da carne deveria ter lugar num cemitério de automóveis ².
O processo de preparação de “L’Éternité par les astres” incluiu a consulta e estudo de vários textos, os quais possibilitam uma aproximação a estas obras, sendo de destacar os contos “Preocupações de um pai de família” e “O caçador Gracchus”, de Franz Kafka, os ensaios acerca deste autor escritos por Walter Benjamin e T. W. Adorno, e ainda a poesia de Baudelaire e uma carta escrita por W. Benjamin a Max Horkheimer, na qual o primeiro revela a sua descoberta do livro de Blanqui, um texto especulativo acerca do universo, que, como nota o autor alemão, era inesperado, principalmente por ter sido escrito por um revolucionário defensor do “coup de main”. Nele, Benjamin vê “a mais terrível acusação contra uma sociedade que reflectiu esta imagem do cosmos enquanto projecção de si na direcção dos céus”. E continua: “No seu tema do ‘eterno retorno’, o escrito tem a mais notável relação com Nietzsche: uma mais obscura e profunda relação com Baudelaire, que ecoa quase literalmente em algumas passagens esplêndidas”³.
Blanqui, Benjamin e Baudelaire são apenas três dos nomes da constelação que tem vindo a ser criada por Emídio Agra ao longo dos anos – a eles podemos juntar Maupassant, Proust e Beckett. É, por isso, porventura, que, aos olhos de muitos espectadores, este é um artista inactual, como esta exposição tem tudo para ser lida como obsoleta, pois tudo nela aponta para um materialismo que procura conscientemente distanciar-se das fantasmagorias características de muita da produção contemporânea. Os objectos apresentados podem também inscrever-se numa tradição surrealista, sobretudo aquela representada por Joseph Cornell e, no caso português, por Álvaro Lapa, que também construiu a sua secretária de Kafka – no diálogo com o artista foi também tida em conta a instalação “O final feliz de ‘Amerika’, de Franz Kafka” (1994), de Martin Kippenberger.
Há ainda um aforismo de Kafka, escrito em Zürau, que serviu de mote e motivação para o desafio de apresentar esta complexa obra, tão singular e excêntrica aos temas em voga na arte contemporânea:
Ele corre atrás dos factos como alguém que aprende a patinar no gelo, que, além disso, pratica onde é perigoso e foi proibido⁴.
1. Walter Benjamin, Kafka, Lisboa, Hiena, 1987, p.52
2. T. W. Adorno, “Apuntes sobre Kafka”, Prismas, Barcelona, Ariel, p. 292.
3. W. Benjamin, The Correspondence of Walter Benjamin, Chicago, The University of Chicago Press, 1994.
4. Franz Kafka, The Zürau Aphorisms, Londres, Harvill Secker, 2006.
Emídio Agra (1968) é licenciado em Artes Plásticas - Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e doutorado em Estética pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Barcelona.
Exposição
23 Mar – 20 Abr 2019