The trees all singing
Exposição, Fora de Portas
22 Jun – 29 Jul 2019
Inauguração:
Sábado, 22 Junho 2019, 16:30
Entrada gratuita
Casa das Artes - Rua Ruben A, 210 Porto
Tu coras como a aurora e ardes como a chama do sol
Óscar Faria
Hildegarda de Bingen foi uma monja beneditina que viveu no século XII. Mística, teóloga, visionária, esta mulher é por muitos considerada simultaneamente a primeira bióloga, médica e feminista. E também nos legou escritos que abarcam inúmeras disciplinas: da poesia à música, passando pelas propriedades curativas das plantas. Uma das noções por si trabalhadas foi a de “Viriditas”, essa força vital visível na cor verde que nos chega das folhas das árvores, das ervas, do musgo e de alguns vegetais. Como nota a sibila do Reno: “Olha para o Sol. Vê a Lua e as Estrelas. Olha para a beleza da Terra verde. Agora pensa."
A monja renana afirma ainda que essa energia verde, verdejante, proveniente da eternidade, era responsável quer por fazer brotar as plantas, quer pelo desenvolvimento espiritual do ser humano. Trata-se portanto, como refere Audrey Fella (Hildegarde de Bingen. Corps et âme en Dieu, Points: Paris, 2015), de uma operação divina, esta, a da “viridez”, uma qualidade que se manifesta através da verdura a ascender da terra e a incorporar-se em cada indivíduo.
Num dos “Cânticos do êxtase” escritos por Hildegarda encontra-se o responsório “O nobilissima viriditas”, onde se lê: “Ó nobilíssima viridez, que tens raízes no sol e que na imaculada serenidade resplandeces numa roda que nenhuma potência terrestre pode abarcar: tu és circundada pelo abraço dos mistérios divinos. Tu coras como a aurora e ardes como a chama do sol.”
A exposição de Filipa Tojal é percorrida por essa viridez de que nos fala Hildegarda de Bingen. Actualmente a viver no Japão, a artista traduz nas suas obras uma singular experiência da natureza. Cada pintura abraça a paisagem, devolvendo-nos esse gesto de um modo silencioso: nas suas formas abstractas quase se torna possível escutar o restolhar das folhas sopradas pelo vento, nelas vislumbrar a manifestação do sol, o toque de um insecto ou as virtudes da água. É igualmente plausível perceber a qualidade plástica destes trabalhos, por vezes miniaturas, que fazem seus os verbos invadir, tingir e sobrepor.
Há também uma estética do fragmento que atravessa esta mostra, que parece surgir de uma arqueologia da paisagem através da qual a artista respiga sobretudo cores, movimentos e tensões, como as mudanças climáticas. A natureza de Filipa Tojal espelha assim a natureza envolvente, com as suas mutações. E vice-versa. Existe aqui uma fenomenologia que aproxima estes trabalhos dos de outros realizados por nome que tem feito da paisagem o principal tema da sua prática artística: João Queiroz, que também irá passar por este ciclo de exposições, na Casa das Artes.
No domínio das correspondências, os fragmentos de Filipa Tojal, que surgem aos nossos olhos enquanto obra acabada, podem ser associados a farrapos ou a cacos de cerâmica. Essa dimensão pode transportar-nos para um poema de Safo de Lesbos ou uma peça romana em terra sigilata, embora no caso de se querer sublinhar o vigor verdejante que subjaz a esta exposição, se possam antes convocar exemplos provenientes da poesia contemporânea norte-americana – Gary Snyder, W. S. Merwin- ou da produção de cerâmica verde-manganésio do palácio de Madinatal - Zahra (século X) – o verde é para o povo árabe a cor da felicidade.
Existe ainda uma outra questão, relacionada com a História da Arte, que pode ser colocada quando se observa este conjunto de pinturas sobre papel e sobre tecido: serão devedoras do Impressionismo? A resposta não será certamente simples, sobretudo numa época em que o passado é absorvido quase imediatamente pelo presente, impedindo assim que uma forma de arte tenha o tempo necessário para amadurecer. Contudo, uma aproximação entre a obra de Filipa Tojal e esse movimento surgido no século XIX pode ser produtivo, tomando-se, por exemplo, como modelo a obra de Berthe Morisot e os seus trabalhos “inacabados”.
A pintora francesa e o estilo “inacabado” visível em muitas das suas obras abrem uma série de pontes para algumas práticas artísticas contemporâneas. Essa dimensão de “perpétuo recomeço” acha-se curiosamente em obras que têm como assunto paisagens, árvores, jardins. É como se a natureza não pudesse ser nunca captada numa pintura, num desenho ou numa aguarela, que apenas constituem aproximações ao real. Trata-se aqui, segundo um comentário de fins do século XIX, do “charme flutuante do esboço”.
Inacabado, fragmentado, esboçado. Se, por um lado, podemos detectar no trabalho de Filipa Tojal estas características, por outro, o seu contrário é também verdade. A obra da artista é acabada, definitiva, sem qualquer dúvida relativamente à sua posição no mundo. Somos nós, espectadores, que temos de resolver o puzzle, o enigma. Cabe a cada um encontrar a resposta para estes pedacinhos de natureza, de arte, feitos com pigmentos sobre papel japonês, tecido cru e papel.
“The trees all singing”, título da exposição, é um verso de Gary Snyder, poeta e defensor de uma ecologia profunda. “As árvores todas cantando”. Mostrados sobre estruturas concebidas especialmente para a ocasião, os trabalhos de Filipa Tojal constituem um convite à meditação, ao silêncio, a um reencontro com essa viridez presente na natureza e em cada ser humano. Pode ser esta também a oportunidade de descobrir o tulipeiro-da-Virgínia, essa árvore plantada há mais de cem anos nos jardins do Palacete do 3º Visconde de Vilar d’Allen, que tem 32 metros de altura e 30 metros de diâmetro. E abraçá-la, como abraçamos as pinturas, que, como folhas, caem sobre os nossos olhos:
“Aquece-me os ossos/ dizem as pedras/ Algo que absorvo e cresço/ Diz a árvore/ Folhas que elevo/ Raízes que desço. (…)”
“Os usos da luz”, de Gary Snyder, 1974 (tradução Nuno Marques e Margarida Vale de Gato).
Em termos da montagem, refira-se a “funaria hygrometrica” ou “musgo comum”, que serviu de modelo para a instalação das obras no espaço. É que esta planta minúscula, para além de preferir terrenos descobertos, bem expostos ao sol, é frequentemente a pioneira da vegetação em solos desnudados, encontrando-se muitas vezes em lugares que arderam. Pousadas nas estruturas desenhadas pela artista, as pinturas surgem assim enquanto metáfora de uma natureza sempre em renovação: a nobilíssima viridez de um planeta em crise.
ANIMALIDADES E OUTRAS BOTÂNICAS
Ciclo de exposições
O ciclo “Animalidades e outras botânicas” pretende trazer para o primeiro plano uma reflexão sobre a forma como a arte tem vindo a criar novos espaços para o encontro entre as espécies, nessa tentativa de aproximar natureza e cultura, incluindo-se nesta proposta, entre outras, as ideias de Donna Haraway, Timothy Morton, Bruno Latour, Paul B. Preciado, Edward Osborne Wilson, Henry David Thoreau, e os poetas W.S. Merwin e Gary Snyder e a sua “ecologia profunda” que, no prefácio ao seu livro “A prática da natureza selvagem” (edição portuguesa, Antígona, 2018), escreve: “O mundo selvagem—frequentemente depreciado como caótico e brutal pelos pensadores ‘civilizados’—é na verdade imparcialmente, implacavelmente, belamente formal e livre. A sua expressão—a riqueza da vida animal e vegetal no globo, que inclui as tempestades, os vendavais, as calmas manhãs de Primavera, e nós próprios—é o mundo real, a que todos pertencemos.”
Filipa Tojal (Freamunde 1993) terminou a licenciatura em Pintura na Faculdade de Belas Artes do Porto. Viveu temporariamente em Londres e em Piemonte - Itália, tendo-se mudado para o Japão, onde vive e trabalha desde 2016. É neste momento aluna do mestrado de Pintura na Universidade de Artes de Tóquio. Recorrendo a técnicas sejam ocidentais como orientais e questionando as diferenças entre estes dois mundos, encontra-se presentemente num processo meditativo visual e conceptual tendo como influência poética a natureza e tudo o que a ela pode estar associado. Numa honesta apreciação do universo pictórico da pintura, conceitos orientais como o imperfeito, o incompleto e o impertinente têm influenciado todo o seu trabalho. Expõe ocasionalmente seja em Portugal como no Japão.
Exposição, Fora de Portas
22 Jun – 29 Jul 2019
Inauguração:
Sábado, 22 Junho 2019, 16:30
Entrada gratuita
Casa das Artes - Rua Ruben A, 210 Porto